quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Dentro de caixas



A mulher olhou em volta toda a sua vida, guardada dentro de caixas. Empacotados, empilhados, todos os anos que vivera, tudo aquilo que a tornara na pessoa que era. A marcador vermelho, legendara os segredos da escuridão dentro das caixas: os linhos da avó; as porcelanas da casa de Trás-os-Montes; as bonecas; os livros; os enfeites de Natal; os cd's e os dvd's; os livros do pai; as coleções do avô; os brinquedos dos miúdos... Caixas e caixas, lembrando-lhe a vida que vivera, tudo aquilo que acumulara... Memórias, a maior parte dos caixotes. Tralha encerrada dentro de móveis, de gavetas, coisas destinadas à noite dos olhos, ocultas, condenadas ao avesso da claridade. Sentiu-se de repente cansada do silêncio que transportava, que arrastava consigo pela vida fora... Cansada do espaço ocupado por coisas que nunca via, por livros que não lia, cd's que não ouvia, copos por onde não bebia, pratos onde não comia... Cansada da sua tralha.
A mulher levantou-se, acendeu um cigarro e saiu para o jardim. Tanta coisa ficaria...! Não havia caixas onde guardar as rosas que alinhara nos canteiros, o cipreste imponente apontando o céu, orgulhoso da sua verticalidade serena, as azáleas rubras e perfumadas, a oliveira que resistia à secura de todos os verões, à neve de todos os invernos, o rododendro explodindo em novelões de sangue... Tinha de os deixar para trás e continuar o caminho mais vazia. Depois olhou o céu que anoitecia, sentiu os seus olhos tristes e percebeu: sim, para além da tralha, havia mais coisas que levava consigo - o cheiro do amanhecer, o olhar fiel dos seus cães, o trinado das aves na ensurdecedora orquestra ao morrer da luz, o cheiro da terra molhada e da relva acabada de cortar, a maciez das rosas, o piar do mocho no aqueduto em ruínas, a voz do vento, o som da chuva molhando as árvores que plantara, as lebres assustadas atravessando a estrada... Tudo isso que não ocupava espaço, não ficaria para trás, iria com ela, nas caixas empilhadas por trás do olhar, caídas num vão da memória - dentro do coração.   

Ana Mateus

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