segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Faça o favor de entrar

Bateram-me à porta e recusaram-se a entrar. «Entre» disse eu lá do fundo de mim – Entre, que já aqui estou sozinha há muito tempo. Preciso de alguém que diga como ele um dia me disse «Que tens, passarinho?», que me toque como ele fazia, sempre com a dúvida no ar, sempre mostrando que alguma coisa havia, que alguma coisa me queria, mas sem o poder desvendar.

Por isso eu disse «Entre», porque já me sentia sozinha há algum tempo, porque queria companhia, porque já não sabia viver assim e porque já não queria. Porque ao fim de tantos «Entre» nunca mais era ele, nunca mais ele me ria, me desenhava com o olhar, me apartava com um gesto, nem me tinha querido falar.

Por isso sempre que me batem à porta eu tenho dito pacientemente «Entre», mas nunca o fazem, nunca chegam sequer a pisar a soleira da porta, nem sequer a tocar devagarinho o tapete que tenho estendido há tanto tempo para quem quer entrar, nem o chá esquecido em cima da mesinha de mogno, nem o calor que guardo ali na lareira.

Por isso já me vou cansando de dizer «Entre», por isso já não o digo todas as vezes, nem tantas, nem quase nenhuma, porque já sei que não vai ser ele, nem ninguém sequer parecido, porque já ninguém me vai dizer «Que tens, passarinho?», nem desvendar-me o olhar, nem pegar-me na mão mesmo sem eu saber que preciso mesmo que alguém o faça, nem despir-me de tudo sem eu perceber, nem olhar-me com aqueles olhos brilhantes quando eu estiver nua à sua frente, a tremer de frio e de tudo.

Porque ele já não vai bater à minha porta. Ou porque se cansou, ou porque não quer ou porque já não pode.

Tem outras portas a que bater, há alguém que tem sempre um «Entre» para ele, só para ele, um colo onde ele se possa sempre sentar e isso eu antes não sabia que tinha para dar.

Já tentei pôr um pé fora da minha porta, espreitar as coisas lá fora, deixar-me de falar do fundo de mim e soerguer-me até à superfície para ver se ele lá está. Para quando o encontrar dizer-lhe que agora estarei sempre à sua espera quando quiser entrar, que o meu colo está sempre pronto, que o chá não deixará de o esperar, que cada vez que bater à minha porta direi sempre ... Entra, entra e apressa-te porque preciso que me passes a mão pelo corpo, que me apartes com um gesto, que me dispas com o teu olhar, que me pegues no queixo enquanto eu estiver ao teu colo e me segredes baixinho «Que tens,  passarinho?»

 

historiasdenos.blogspot.com

 

 

Crédito da imagem:  fotografia de mallorylucille em flickr

 

 

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