sábado, 19 de março de 2022

instagram filter reyes

 

 

Os móveis planejados ocultam o tamanho pequeno dos cômodos e as paredes texturizadas são ocas, pré fabricadas. As suculentas em compartimentos quadrados abaixo da pia do lavabo são as plantas preferidas porque não morrem se lhes faltar cuidado diário, podem conservar sua boa imagem sem que haja, de fato tanto apreço por elas. As formas são precisas e a paleta de cores, harmônica, em tons pastéis e cinzas claros. O apartamento é perfumado por um dispositivo que, de tantos em tantos minutos, espirra essência artificial de eucalipto (isso não pode ser visto nas fotos, mas é sugerido por elas, pois algumas fotos têm cheiro). A varanda ampla, que contorna toda a extensão do andar é especialmente pensada para acolher a luz.

O sol se transforma quando adentra esse tipo de casa mostruário. Desfaz-se da qualidade de astro e torna-se holofote: fica mais pálido e ameno, mais distante. Deixa de ser sol, bem como as pessoas, aqui dentro, deixam de ser pessoas e se tornam pessoas mostruário. Da varanda ampla se vê a Mata Atlântica que mal existe, mas aquele pedacinho distante de verde encarece cada centímetro quadrado do imóvel. Não está muito longe, mas aqui não chega o cheiro do mato. O mar fica no final da rua e a poeira da casa é areia trazida pelo vento, essa poeira litorânea é única lufada de verdade aqui. Estamos no vale dos perfumes plásticos, do odor de coisa recém-comprada e do assombro do como- pode-esse-chão-de-porcelanato-ser-tão-limpo.

A dor aqui vivida parece meditação. Sem espasmos ou soluços, mas determinada forma de se refastelar no sofá e contar a passagem do tempo pelos toques na tela do celular. A anestesia é dosada de forma homeopática, tão mais elegante que a tarja preta das verdades indizíveis. Vivemos baixando a saturação e aquecendo a foto, usando algum filtro pronto: Reyes, quem sabe.


Ravenna Veiga

 

 

 

 

 

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