terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Mona... quem?

 


Turistando pelo carnaval carioca, Monalisa - nem um pouco acostumada ao clima tropical - topou  com temperaturas infernais. Andando pela orla de Copacabana, onde os mostradores dos relógios registravam temperaturas de 36 graus C, a Gioconda sentia a pele arder e queimar com uma sensação térmica não inferior a 51 graus C!!! Chegando a Ipanema, não pensou duas vezes: adentrou o Maison Blanc e na cadeira do Ezequiel pediu um corte bem moderno, no estilo curtinho prá enfrentar o calorão... Feito!!! Eis que ficou bem diferente, mas ainda assim bela, a nossa Musa, não?



O chamado do dia

 


Espertei cedo, sacudido de sonhos e enfarado de lençóis e mantas. O corpo pedindo ação e bulício, qualquer frenesim que me transporte ao dia, ainda não nascido. Há um pássaro nos arredores que sonoriza antes dos galos. Como a consciência do que virá, os avisos de continuidade, que o fogaréu não finda, o desejo de seguir insiste. Este pássaro me traz a sensação de cotidiano, tantas vezes me alertou da passagem da escuridão para a luz, sobretudo da delicadeza do que seja a noite metamorfoseando-se em alvorada. Um limite, um fragmento do que foi e do que será, um decurso tênue, passadiço de segundos, feito abrir os olhos.

A luz já se insinua agora, em azul escuro, densamente frágil e momentânea, cigarras substituindo os grilos, pirilampos desligando as lanternas, trabalhadores de roça fazendo café, o momento em que a mesa ainda não está posta, mas que é impossível dizer que seja madrugada, já é dia nascido. O momento em que nos lembramos do fio do machado, do corte da enxada, da chave dos tratores, dos sapatos, dos balaios.

Foi dito, e enquanto escrevia, ela veio, se adensou, espalhou-se mais. Uma luz que brota do oriente e faz um arco, depois ponte, finalmente a avenida. Desfaço-me do endosqueleto dos sonhos, do mundo interno abissal, escolho lançar-me ao coletivo, às multidões que vão aflorar. É a hora de desejar bom dia. O primeiro carro partiu no caminho do semeado. Os sinos tocam. A vibração das forças se intensificaram e o chamado das ruas se mostra.

José Antonio Abreu de Oliveira


Crédito da imagem: Nascer do Sol do Rancho do Descanso acompanhado de um cafezinho preto do coador de pano – Foto de Hospedaria Vida na Roça, São Bento do Sapucaí




Flor de pitaya

 


Flor da pitaya, ameaçando abrir-se ao sol. Parece um alien, um polvo vegetal, ou filetes de pesadelo. Depois, ficará bonita e atrairá muitos insetos. Tem origem na América Central e México, por isso suas formas arredondadas de um Botero, uma flor gorda, que gera um fruto escamoso. Impressiona-me como se lambe de sol, um complemento.


José Antonio Abreu de Oliveira






Dois artistas

 


(…) Pus-me atento, claro. Pouco a pouco, reparei que o homem, enquanto me barbeava silvava umas notas musicais dirigidas ao canário. Notas soltas, segredadas, mas certinhas. E que o canário, de cabeça inclinada, as escutava uma por uma, e só de vez em quando metia um breve trinado de apontamento. Uma cumplicidade, afinal, de dois artistas solitários, o da gaiola e o da tesoura.

Ainda hoje estou convencido de que aquele canário nas horas mais felizes cantava Rossini e que só o barbeiro o sabia entender porque era diplomado e universal. (…)


José Cardoso Pires
in ‘A Cavalo no Diabo’


Credito da imagem: "Um pássaro em gaiola na aldeia HoiAn, Vietnã", fotografia de Vogelbauer





sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Um desamor só e ferido

 



É doloroso por vezes chegar a casa, encostar o corpo,
fechar as pálpebras e sentir que a cabeça é um quarto vazio,
um desamor só e ferido,
queimadura que chega ao coração.

Joaquim Pessoa



Arte  de  Natalia Drepina




quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Podíamos...

 



Mais do que isto, sim.

Mais do que isto, podemos ficar caladas. Com um olhar parado como aquele dos mortos. Podemos consertar durante longas horas o fumo a sair de um cigarro, a forma de uma chávena, a flor esbatida no tapete, o slogan a desaparecer na parede. 
Podemos evitar as cortinas com os dedos enrugados e ver a chuva cair fortemente no beco, uma criança parada na porta com um colorido papagaio de papel, uma carripana* a sair da praça vazia numa pressa barulhenta. 
Podemos estar ali paradas Ao pé das cortinas – cegas, surdas. Podemos gritar com uma voz bastante falsa, bastante remota "eu amo…" 
Nos braços dominadores de um homem podemos ser uma mulher saudável e bonita. Com um corpo, como uma toalha de mesa de cabedal, com dois peitos grandes e duros, na cama com um bêbedo, um louco, um vadio, podemos manchar a inocência do amor. 
Podemos degradar com astúcia todos os mistérios profundos, podemos continuar a resolver palavras cruzadas, a descobrir alegremente as respostas sem sentido - respostas sem sentido, sim – de cinco ou seis letras. 
Com cabeça inclinada, podemos nos ajoelhar uma vida inteira perante a classe dourada de um túmulo, podemos encontrar deus numa sepultura sem nome, podemos trocar a nossa fé por uma moeda sem valor, podemos apodrecer no canto duma mesquita como um velho recitador de orações de peregrinos. Podemos ser constante como o zero. Nas somas, subtrações, ou multiplicações. 
Podemos pensar nos teus - mesmo nos teus – olhos. Como buracos sem brilho, nuns sapatos velhos. Podemos secar-nos numa bacia, como água. Com vergonha podemos esconder a beleza de um momento juntos no fundo de um baú como uma velha e estranha foto, na moldura vazia de um dia podemos mostrar a imagem duma execução, duma crucificação, ou de um martírio, podemos tapar as rachas na parede com uma máscara. 
Podemos lidar com imagens mais ocas do que essas. Podemos ser como bonecas de corda e olhar para o mundo como olhos de vidro e jazer durante anos entre rendas e lantejoulas, o corpo recheado de palha, dentro de uma caixa de feltro, e a cada toque de luxúria gritar sem nenhuma razão "Ah, que feliz sou !"


Forugh Farrokhzad




*carripana - substantivo feminino PORTUGAL

1. veículo velho ou de má qualidade us. para transporte coletivo; machimbombo.
2. automóvel de aspecto frágil.




Imagem via Pinterest





Agora vai ser assim

 




Agora vai ser assim: nunca mais te verei. Este fato simples, que todos me dizem ser simples, trivial, e humano, como um destino orgânico e sensato, fica em mim como um muro imóvel, um aspecto esquecido e altivo de todas as coisas, de todas as palavras.

Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores me esquecia de pensar, e o ar passava por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar a vida sem imagens da paisagem. 
Marcávamos férias em meses diferentes. O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre em outros dias. Tesouras surdas rompiam o cordão dos telefones, e por engano urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade, a tua, não poderiam nunca encontrar se no mundo.


António Franco Alexandre





Arte de Matt Wisniewski



Do livro "No íntimo de uma gramática morta"

 


Falam de restolho, mas obriga-os a atravessar o campo ceifado, rouba-lhes os sapatos, os pés rasgar-se-ão a cada passada, e encher-se-ão de sangue. E de sangue. E de sangue. E o restolho tornar-se-á sinônimo de sangue. E não do amarelo dourado do entardecer. E por fim restolho e sangue serão a mesma coisa. E as moscas que os acompanharam na travessia, zumbindo, zumbindo, zumbindo, serão sangue. E uma ave perdida será sangue. E os gafanhotos serão sangue. E o meio-dia das cigarras será sangue. E o sangue cairá no sangue, alimentar-se-á do sangue. E eles olharão os dedos e gritarão. tenho as mãos sujas de sangue. Essa sujidade invadi-los-á. E as vísceras: sangue. E os ossos: sangue. E os olhos. E a luz. E conhecerão enfim a beleza dourada do restolho. E da tarde e da manhã se fez o interminável: o dia primeiro do sangue. Quando a voz se calou, o sangue estava por todo o lado   

Rui Nunes



Imagem via https://neontal.tumblr.com




quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Os passageiros da noite

 


Enquanto o médico escrevia a receita com os comprimidos para dormir, a mulher pensava. Não os tomaria. Sorriu até com desdém da inocência daquele homem que nada tinha entendido. Ela não queria dormir. Nunca mais. Como contar ao médico que o sono lhe roubava as memórias que queria conservar e avivava as que ela queria esquecer para sempre? Como contar dos passageiros da noite, os invisíveis, que lhe arrancavam a pele enquanto dormia e a deixavam despida, a sangrar do lado de dentro? Como explicar que a noite tem negros dedos longos que se entrelaçam à volta do seu pescoço e lhe apertam a voz, lhe roubam as palavras de que precisa para contar o que acontece em si?

Ana Mateus


Arte de José Todorovitch




segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Conversa de amigos

 


- Fugiu-me da mão e quando tentei apanhá-la já ia longe.

- Tens a certeza que foi assim?

- Então, se te estou a dizer... Bem que a chamei, gritei, implorei até.. E ela nada. Já não queria saber de mim, já ia com o vento, já se desprendia na chuva.

- Então e agora?

- Agora sei lá eu que vai ser de mim, assim, sem amparo nem razão, assim tolhido e perdido nas madrugadas, assim sem a mão dela na minha ao adormecer.

- Mas sabes porque é que ela se te desapareceu?

- Vá-se lá saber, ela também sempre foi um bocadinho assim, de inconstâncias e desaparecimentos. Mas é que desta vez foi pior, desta vez não volta, desta vez já não a vejo mais. Nunca mais.

- E para onde será que ela se foi?

- Ai isso sei eu bem, isso eu sei das tantas vezes que me avisou, no meio daquela inundação toda de lágrimas, cada vez que nos perdíamos no meio do meio dos nossos dias, quando já nem nos conhecíamos, sabes? Ela bem me avisou que um dia se ia, que um dia me esquecia e que se ia nascer do princípio, à beira da vida dos outros que sabem o que é isso de ser feliz.

- Mas onde é isso exatamente?

- Ai, aí já não te sei responder. Nunca conheci ninguém que seja mais feliz do que eu sou sempre e cada uma das vezes que a minha mão toca a dela.


@Historiasdenós.blogspot





te digo que a minha alegria
é o sol a luz da manhã
o vento o mar o verão
e poder a cada dia
apertar a tua mão

Dalva Nascimento




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