terça-feira, 19 de novembro de 2024

Orgulho

 


Vivemos numa constante batalha para provar quem é o "mais forte" quando se trata de sentimentos: quem se entregar primeiro perde, essas são as regras, nenhum dos dois pode demonstrar  se importar com o outro, se mandar mensagem perde ponto, se sumir ganha ponto, se disser que gosta perde ponto. Em meio a esse duelo, deixamos subentendido que gostamos um do outro, mas nunca vamos admitir isso.

Isso é o que eu chamo de suprassumo da inteligência. Ninguém quer ferir o próprio ego, e assim criamos uma linha imaginária de submissão totalmente desnecessária. Por que me sinto submisso por falar contigo antes de você vir falar comigo? Não dá pra ser recíproco?

O veneno desse sentimento vai se esparramando, e cada pequena desavença se torna o maior motivo do mundo para não responder uma mensagem, para deixar o telefone tocar seis vezes antes de atender dizendo que estava de "bobeira" e não assumir que sentia saudade nem por um milhão de reais em barras de ouro.

Nisso você deita na sua cama, fica rente à parede gelada para amenizar o calor, coloca a perna esticada para fora do cobertor e fica ensaiando alguns diálogos que nunca serão ditos. Inquieta e encarando o celular, você decide t4entar remediar a situação, liga e fica ouvindo o telefone tocar com o coração na mão, enquanto cada toque não atendido só faz o arrependimento aumentar. Você se expõe e acaba sendo mais rejeitada do que um operador de telemarketing. E, só para manter a tradição, atrasamos mais uma vez o inevitável. Realmente somos geniais.

Às vezes o orgulho os torna idiotas, mas às vezes ele nos faz não passar por idiotas. Sei quão geniosa você pode ser e como é difícil fazer um simples e sincero pedido de desculpa, mas tudo isso necessita de equilíbrio e bom senso. Ninguém quer sair rebaixado, e saber ceder é o segredo para um relacionamento emocionalmente estável. Se o teu orgulho for maior que o teu sentimento, fica realmente difícil dar certo.


Fred Elboni







sábado, 9 de novembro de 2024

Manhãzinha silente

 


Café com pão e queijo esquentadinho na chapa, e sol da manhã na pele: pode ter aquecimento melhor depois de uma longa noite de sono? Dormi, dormi e dormi, Penso que descansei uns anos. E acordei inteiraço. Com aquela vontade de visitar primos na roça, pegar bergamota, biribá, pêssego e goiaba. Ver os primos alimentando as vacas, cheirinho bom de merda de vaca, quem não gosta?

E aspirar o ar do campo, aspirar os sons do campo, ver o pinhé gritar pinhé, aquele grito quadriculado, carijó garroso, bico semiluado. Lustroso de alaranjado. Ouvir histórias, o conversê dos porcos e galinhas, a formosura miúda dos garnisés, bichinho que parece sapato emplumado, danado de orgulhoso. Sei lá, dia que eu não puder ver garnisé, acho que a vida não acontecerá. Gosto de tudo que é bicho, mas tem uns que me enfeitiçam mais depressa. 

Por fim, além dos carinhos dos primos, lá, escondido atrás da moita, que ninguém vê, depois da curva vermelha de barranco calvo, espreita o lago, taboal de segredos. De súspito, de dentro dos esconderijos das canas emergem os marrecos selvagens, pequenos barcos chineses, soprados por ventarolas. 

Singrando a aguinha silente, desenhando caligrafias na pele fluida e licorosa de  líquens desnomeados, como o surgimento do universo. Que o mundo nasceu assim, daquele escuro-esverdeado do meio do lago, e veio vindo, veio vindo, de repente era um marrequinho bicando as asas.


José Antonio Abreu de Oliveira













terça-feira, 29 de outubro de 2024

Pequenos prazeres

 



Madalena cresceu tendo tudo entre as mãos. Andou nos melhores colégios, com os brinquedos mais caros, cavalos árabes, festas de um turbilhão de cores, empregadas para cada momento, as pérolas e as amigas de conveniência.

Agora, mulher elegante, bonita, bem cuidada e interessante, passa os dias entre o ginásio, as excursões à Avenida da Liberdade com as amigas, os palmiers da Pastelaria Restelo às cinco, os vestidos de marca, os sapatos JimmyChoo, o pecado dos croissants da Bénard nos dias de chuva.

Sente-se bem e esta vida traz-lhe um sorriso aberto a todo o instante. Apesar de às vezes lhe parecer que alguma coisa se perdeu.

No almoço de sushi na Bica, a amiga de sempre sentencia com uma gargalhada cantada: "Isto é que é viver bem.. A vida é feita destes pequenos prazeres!"

E Madalena sorri um sorriso triste, se é que isso existe.

Lembrou-se do avô. O avô que é hoje um resto do que foi, uma ínfima parte do que era.

O verão a sério só chegava com as duas semanas que passava com os avós paternos na Costa. O avô sempre cheio de força e energia, que a ensinava a fazer torres infinitas com a areia molhada, levava-a até às ondas mais rebeldes, ensinava-a a comer conquilhas* cruas que encontravam arrastando os pés na maré-vazia. Apanhavam uma dúzia, ia tudo para o balde azul e depois sentavam-se a comê-las. Sushi à antiga.. "Sabe mesmo a mar... A isto eu chamo pequenos prazeres" e ria, coisa que era rara nele. E Madalena sorria sem perceber, mas feliz por estar ali.

Tem saudades do avô, do verão na Costa, das marés-vazias. Muitas, imensas. Se calhar devia dizer-lhe isso na próxima visita. Ainda que ele nem perceba, perdido que está no espaço e no tempo, perdido de si e dos seus. Tem saudades do seu sorriso à beira-mar.

Acaba de decidir: na próxima vez leva-lhe um balde azul cheio, carregadinho de pequenos prazeres. Pode ser que o faça lembrar quem é a menina-mulher que ali está à sua frente. E talvez até sorrir.

historiasdenos.blogspot.com


*conquilhas:
designação comum, extensiva a diferentes espécies de moluscos bivalves do género Donax, da família dos Donacídeos, comestíveis e bastante comuns nas costas meridionais portuguesas, sobretudo em zonas de rebentação marítima, enterrados no areal a pouca profundidade



 

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Banquete de luz

 


Ao contrário dos outros quadros, que pareciam ter sido levados com lama e borra de café, este -  este banquete de amor - consistia na cor. Uma mesa iluminada pelo sol - sobre a qual tinham sido colocados pratos, chávenas e copos - parecia transbordar de luz. A mesa e o banquete tinham sido colocados no plano mais próximo e, de todos os lados, o fundo parecia relegado para uma espécie de escuridão visível. O olhar regressou à mesa. Nos copos havia não vinho, mas luz, e as bandejas tinham pratos de tons extremamente coloridos, como se o convidado tivesse trazido para aquele banquete um apetite, não de comida, mas do espectro inteiro da cor, iluminado por candeeiros de arcos celestiais. A comida não tinha forma. Tinha apenas cor, pastéis ardentes, clarinhos mas intensos. Uma magia de visionário fluía de uma ponta à outra da mesa, todos os pratos tendo sido transformados em abstrações de formas demasiado brilhantes, como se uma pessoa tivesse saído de um cinema e se deparado com uma radiosa tarde de verão no coração da cidade, onde todos os objetos estavam tão carregados de luz que os olhos não conseguiam processá-los. O quadro era como um flash, uma arte que cegava como uma catarata. Aquela comida disposta diante de nós era exatamente assim. Depois, reparei que a parte da frente da mesa parecia inclinada na direção do observador, como se toda aquela luz, estivesse prestes a tornar-se nossa.

Charles Baxter
In: Banquete de amor



Credito da imagem: elegante banquete, com mesa iluminada por luz de velas e vinho, gerada por IA, via Vecteezy













domingo, 27 de outubro de 2024

A concha que habitas

 



Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas história a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.


Caio Fernando Abreu



Crédito da imagem: Via Freepick, gerada por IA




sábado, 19 de outubro de 2024

Dos meus livros

 

Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz

Correspondência Amorosa Completa, 1919 -1935



(...) Quem me dera ter a certeza de tu teres saudades de mim a valer. Ao menos isso era uma consolação... Adeus; vou-me deitar dentro de um balde de cabeça para baixo, para descansar o espírito. Assim fazem todos os grande homens - pelo menos quando têm - 1º espírito, 2º cabeça, 3º balde onde meter a cabeça.

Um beijo só durando todo o tempo que ainda o mundo tem que durar, do teu, sempre e muito teu


Fernando (Nininho)


5-4-1920


💓



terça-feira, 15 de outubro de 2024

Olhar para cima

 


Aninhados num beiral, os pássaros empreendiam um vai-e-vem constante. Voavam por toda a cidade procurando dores e tristezas. Usavam-nas para construir os ninhos onde viriam a eclodir ovos cheios de amor e alegria, os quais mais tarde se haveriam de espalhar pelos céus para beijar os olhos daqueles que tinham coragem de olhar para cima e continuar a sonhar.

Fernando Guerreiro



Crédito da imagem: Pintura em arte de rua - Lisboa, de J. de Montaigne




quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Grey's Anatomy


Gosto muito desse seriado! Algumas personagens são icônicas, perdoem-me os que não gostam. E uma das minhas preferências são aquelas narrações feitas no início ou no final de cada episódio... Vai uma: 


Sem medo de ser feliz

Há uns duzentos anos atrás, Benjamin Franklin compartilhou o segredo de seu sucesso com o mundo. Ele disse “nunca deixe para amanhã o que você pode fazer hoje”. Esse é o cara que descobriu a eletricidade. Então é normal achar que a maioria de nós iria ouvir o que ele fala… Eu não tenho idéia porque a gente fica adiando as coisas, mas se eu tivesse que chutar, diria que tem muito a ver com o medo. Medo do fracasso. Medo da dor. Medo da rejeição. Às vezes, o medo é de apenas tomar uma decisão, porque e se você estiver errado? E se você fizer um erro que não dá pra desfazer? Seja lá do que a gente tem medo, uma coisa é sempre verdade: com o tempo, a dor de não ter tomado uma atitude fica pior do que o medo de agir. Acaba parecendo que a gente está carregando um tumor gigante. E, não, eu não estou falando metaforicamente.



terça-feira, 24 de setembro de 2024

Romantizar o mundo



O mundo precisa ser romantizado. Assim, seu sentido original pode ser redescoberto. Romantizar o mundo é fazer-nos conscientes da magia, mistério e maravilha do lugar-comum; é educar os sentidos para ver o ordinário como extraordinário, o familiar como estranho, o mundano como sagrado, o finito como infinito.

Novalis



Foto: Pinterest





quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Quem não gosta de beijos?

 


Um beijo bom se sente, se entende, se molda. É preciso ser inquieto, ter malícia e, principalmente saber a dosagem exata de safadeza, para não perdermos o nosso carro-chefe: o carinho. Durante o beijo, o gostoso é trocar as rédeas. Cada um domina um pouco e adverte o outro de que, a partir de agora, provocar é uma regra que deve ser seguida à risca.

Gosto de beijos que dão suspeita de saudade3. Daqueles brincados, com direito a mão na nuca, cabelo atrás da orelha, duelo de mordidinhas e a minha melhor barba desbravando o seu melhor caminho: o da boca até o ouvido. Engraçado, mas eu sei exatamente o que você gosta de ouvir sussurrado ao pé do ouvido: e, como recompensa, só quero arrepios - daqueles que se traduzem em palavras como "Não para" no nosso dicionário íntimo. Você, melhor do que ninguém, sabe do que estou falando, e, no auge dessa saudade, te digo com todas as letras que não existe coisa mais gostosa do que isso. Nem Nutella.

Gosto de viver essas venturas em forma de beijos de todos os tipos - carinhosos, safados, contidos, fortes,  delicados, envolventes e os mais gostosos de todos: os beijos que não querem ficar só em beijos. Beijos com segundas intenções, que, na verdade, são apenas as primeiras.


Fred Elboni




Imagem via Pinterest



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