quinta-feira, 28 de setembro de 2023

As mulheres





As mulheres conhecem-se pelo andar. Não é a velocidade dos saltos ou a idade tardia com que chegam ao café.

Depois dos raios cruzarem os ares e a rua estar deserta elas abrem as portas e lançam centelhas pelos poros, fêmea até depois dos cem. Quando são avós, as mulheres inventam mimos como uma equação puramente matemática, porque o amor das mulheres é rigoroso até à infusão de frutos, ou folhas de tília a florar a próxima aventura da netinha.

Já todas nos sentimos assim, amadas até ao infinito e sem saber o que fazer com ele. É por isso que as bolsas das mulheres são a terra do nunca com um final feliz, quando encontram a chave e o batom e abrem as portas de vermelho em sangue nos lábios com que beijam a vida e o chocolate. Sabemos que são elas pelo andar e não está em causa se é chato o pé ou as pernas tortas.

Se as conhecemos tão bem é porque estão longe da perfeição e ao falarem dela riem-se da coxa enfeitada de celulite quanto baste para escapar ao fotoshop. Se o andar as distingue é porque caminham com sorriso de ave nos olhos da gente, que ao passar recebe bolinhos da avó ou uma sopa quente. As mulheres dependem da estação do ano na temperatura com que se dão, dependem dos comboios e das bicicletas porque o andar é inefável de tênis ou muletas.

Quando as mulheres se cruzam entre duas ruas não sabem de si, da raça inconfundível que geram a dançar ou coxear, da fusão dos meteoros no seu ventre de mãe ou de bebê, porque o umbigo das mulheres é mesmo o centro do mundo e lá no meio há um círculo de bondade a abrir como se fosse um descapotável* e elas uma noite de verão, ou só de estrelas.

Há uma linha direta entre o andar e o calor do ventre. É por isso que o colo das mulheres é valioso como uma estrela e se reflete no andar para que todos saibam que são elas, as mulheres, e rebentem o desemprego e o desamor, a escavar o amanhã e o depois num país sem tréguas.


Rosa Alice Branco


*
a) A palavra “descapotável” contém o prefixo “des-”, que exprime negação ou falta, e o sufixo “-vel”, formador de adjetivos e que significa “passível de”.

b) A partir dos afixos descritos em (a), infere-se que a palavra “descapotável” significa “passível de ficar sem capota”. O termo “conversível”, por sua vez, significa, literalmente, “passível de ser convertido”. O termo “descapotável” é semanticamente mais transparente por se associar a uma parte do carro (a capota), ao passo que “conversível” apresenta um sentido, em princípio, mais amplo, que se poderia aplicar a qualquer objeto que possa ser transformado; daí a consideração de que o primeiro seria “mais claro” e “faria mais sentido” do que o segundo.



Crédito da imagem: Matisse Women

(women of Matisse print)




Etéreas

 


Não sei por que, Silvinha, sempre tive fascinação por meninas que me deixavam arrebatado e com medo ao mesmo tempo, sempre e de algum modo as meninas que me atraíam me pareciam inatingíveis, etéreas, como se fossem destinadas a outros e não a mim... Essa impossibilidade aumentava meu fascínio de pierrô.

Arnaldo Jabor
em Amor é prosa, sexo é poesia



Crédito da Imagem: Maquillage de Pierrot et Colombine - Ma Folie Des Fêtes






sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Terra. Chão. Raízes

    


Havia um perfume adocicado muito intenso que se desprendia da cesta das maçãs e que eu não sei descrever... Nos degraus de pedra ancorava um raio de sol onde se aninhavam quietos os lagartos e nas asas das aves, inundadas de azul, estavam gravadas todas as rotas... Tudo estava certo, o mundo desdobrava tardes infinitas de pés descalços na terra tão seca, que era a alegria suprema desenhar no pó da pele enigmas secretos com o dedo molhado de saliva. E ríamos... O mundo era tão grande, o mundo era enorme...! Encostávamos as costas à cal das paredes para lhes sentir o calor e lambíamos as mãos pegajosas de compota vermelha e de sumo de laranja... No velho tanque, cheio sempre de água gelada, mergulhávamos o rosto e parávamos de respirar o máximo que pudéssemos, a ouvir o som distorcido das gargalhadas que só sabemos dar na infância... Éramos peixes, éramos pássaros. E não tínhamos medo. 

Ana Mateus



imagem via Pinterest





quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Incandescente

 


Os olhos turvaram-se ao se aperceberem de que aquela seria a última vez que se veriam. Os corações, acelerados, bombearam sangue incandescente por todas as veias, a pele arrepiou-se e as bocas calaram-se. Para os intelectuais, esta era a expressão máxima da fisiologia do corpo humano, para os simples, esta era uma enorme tristeza.

@microcontos



Escultura de Benjamin Probanza




sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Prá lá do visível

 


Não digo que te amei por ter possuído o teu corpo, mas sim por ter roçado a tua alma. Se pudesse estar apenas perto de ti, a ouvir a tua voz e a demorar o meu olhar sobre o teu, ter-te-ia amado na mesma... Fiquei presa no que está para lá do visível; enredada entre as folhas da tua verdadeira essência.

Possidónio Cachapa



Imagem via theleoisallmymind



A primavera chegará

 


A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.

Cecília Meireles



Grito

 


Tento insinuar-me nos teus percursos, mas a brisa apenas me fala dos aromas que deixaste.

É grande o meu desassossego, confrontado com a impossibilidade do canto da ave. A mordaça cingiu-a, cruel, e o silêncio insiste em negar-me os segredos.

É então que se solta o grito, lancinante, mas a perpetuação do eco apenas acentua a distância. Só as cotovias, condoídas, me sopram ao ouvido as tuas lágrimas. E, de coração na mão, teimo em percorrer o caminho que me levará à frescura dos teus passos.


A.C.



Fotografia de © Neil Mota. 




quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Bondoso dia

 


Bondoso dia, ungi-me com os santos óleos da aurora. Essências rosadas de nuvens, ouro aéreo de sol, borbulhas de gorjeios que caem dos elevados cântaros das árvores,  produtos vindo do oriente,  que a gente chama de levante, que é o mesmo que acordar... e agir.

Ó leste, ó agreste, ó África-mãe, princípio de tudo. Todo dia esse sol me cobre com raios de texturas ewe, fulani, kuba. A doçura atávica que invade o peito tanto quanto o uivo do leão.

Ele, que dormia esta noite na savana. Acordou-me em mim, estamos indo. Ruiva juba, raios de sol, potência de vontades.

Espero que assim, também com vós outros.

Bom dia!

José Antonio Abreu de Oliveira




Arte de Marilyn Turtz





Agosto vai tombando mansamente



Agosto vai tombando mansamente numa doçura de poentes cor de sangue... Os dias baloiçam devagar, diluindo nas horas que escorrem, indiferentes à pressa, todas as angústias que o coração carregou o ano inteiro...

Em Agosto não há tempo nem urgências... e é o mês de todas as resoluções. Agosto espreguiça-se em dias claros e em noites mornas e cheias de brilho, em madrugadas tranquilas embaladas no canto das cigarras e dos grilos que parecem nunca dormir... É o mês das marés vivas, do mar irado que sobe no areal, do nevoeiro matinal e das chuvas mornas, da ronca* a acordar a cidade e a fazer-se ouvir por cima da dolência das badaladas do sino da igreja...

Há uma paz única em Agosto, no pulso sem relógio, no despertar lento e preguiçoso, na evasão das leituras adiadas, nos passeios à beira-mar quando a cidade escurece lentamente, nas conversas arrastadas em esplanadas rasgadas de sol e de risos. Em Agosto todos os dias são meus, todos os instantes me pertencem. É o mês da solidão, tão boa, que desenha escadas em caracol até ao poço mais fundo no fundo de mim. É o mês das memórias, dos planos e das decisões tomadas com um sorriso e com o coração pacificado.

É possível parar em Agosto. É possível comprar um gelado de tangerina e menta e saboreá-lo junto ao mar, em passos lentos, talvez ouvindo cá dentro uma música eterna, um texto que me comove ou um poema inesquecível... É possível fotografar o mar, aprisionar na câmara o tombar das ondas, o enrolar e desenrolar do azul, a explosão fria da espuma... Em Agosto escrevem-se poemas e colocam-se pontos finais, como uma casa onde fomos felizes e que finalmente arrumamos... E quando suavemente batemos a porta atrás de nós, sabemos que é possível recomeçar em paz. Sabemos, cá dentro, que por mais difícil que tenha sido, conseguimos colocar o ponto final.


Ana Mateus


* ronca. maquinismo que produz sons fortes para avisar os navios da proximidade de terra




segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Domingo estranho

 



Nenhuma brabuleta* sobrevoou o quarto, e são tantas... Nenhum grilo, nenhuma abêia*.

Todas as mulheres usam vestidos floridos, hoje. Estampas imensas, folhagens acúleas*, coloridos que regalam.

Ainda assim, o sino das seis horas bateu melancólico. As jataís* emudeceram suas asas.

Ergui um sobrolho de assunção, o amor embotado. Sim, ele existe, mas rugoso, de textura apreensiva. O que houve?

Quando me desamparo sei que perdi, ou estou em cheque. Joguei mal. Não disse as palavras certas, me dividi ente o pragmático e o ousado.

Domingo estranho, porque refarei uma jornada, imprevista. E o trem já vai partir, e não sei bem o nome da cidade. Nem a que deixo, nem a que me receberá. Não tive tempo de saber se as mulheres floridas estão alegres. As brabuletas aguardam. A estação, deserta.

(Perdoem a inflexão, o desafogo. Darei notícias da paisagem.)


José Antonio Abreu de Oliveira


Crédito da imagem: Vista interna da antiga estação ferroviária com trem e plataforma vazia em São Peterburg, Rússia. Dia de inverno nevado, via Freepik


1. Brabuleta. Variação de borboleta. Voa, voa, voa, brabuleta.

2. Abêia. Variação de abelha.

3. Acúleas. De Acúleo. Morfologia botânica: emergência epidérmica dura e pontiaguda (como as encontradas na roseira), que se pode destacar com facilidade, sem produzir lesão acentuada no vegetal, o que a distingue do espinho.

4. Jataís. Pequenas abelhas, sem ferrão e muito cobiçadas pelos apicultores.


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