quarta-feira, 13 de maio de 2020

Náufragos

 

Ele prometeu voltar depois do outono. Ela fez de conta que acreditou. Ele havia esquecido a chave no carro. Ela arrumou as malas e foi para a praia. Ele percebeu algo estranho durante o banho. Ela atirou-se ao mar sem avisar. Ele encontrou a carta sobre a descarga. Ela descarregou a dor por cima das águas salgadas. Ele deixou a água escorrendo a transbordar na banheira. Ela escorregou por baixo das ondas geladas. Ele chorou dores vivas entre as letras mortas das folhas gastas. Ela perdeu o pé e a água era tão funda. Ele gritou por ela pingando tristezas no envelope rasgado. Ela sangrou a boca na pedra afiada. Ele atirou a carta em pedaços janela afora. Ela respirou o mar inteiro boca adentro. Ele deitou a cabeça zonza no travesseiro. Ela engoliu pesadelos derradeiros no abismo profundo. Ele sonhou delírios azuis na madrugada.
Sobraram restos indigestos naufragados de amor.

Nic Cardeal
(da série 'contos em miniatura para dores máximas')






(Imagem: Google - afundando/Tumblr)



Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Há demonstrações de carinho que nos imensam!"

Manoel de Barros