terça-feira, 31 de outubro de 2017

Coturno 36




Pediu ao padrasto coturno que coubesse nos pés 36. Ele logo soltou em forma de berro: “e tu é homem? Vai usar coturno pra quê?” Não tinha resposta pra isso. Era astuta, mas era ainda mais moça que astuta. Colocou o velho tênis e foi para o trabalho. Mas meses depois lembrou do assunto de novo: “sargento, não tem como me arrumar um coturno 36?” O padrasto bateu na mesa: “onde é que tu já viu soldado com esse tamanho de pé? Tu é mulher macho?” Foi quando ela desistiu de pedir. O sargento era cabeça dura. Calçou o velho tênis e foi para o trabalho. De noite como era de costume dormia com uma faca embaixo da fronha. Era rotina ser visitada pelo padrasto à noite com o devido consentimento da mãe. Por isso quando tomou tento e força, tratou de trabalhar e no que ganhou o primeiro cruzeiro - comprou uma faca de cabo branco, das grandes, bem afiada. E arrumou amolador - dos bons também. Antes de deitar a mãe mandava orar. "Vai! Ora pra Deus!" Ela pegada do amolador e da faca, deixava o gume tinindo. Sonhava com um belo desfecho de golpe, a cama ensanguentada, a carne do porco perfurada até o osso. Conseguia dormir de alívio. Mas passou um ano e outro e outro ano. A faca só tinindo no aço esperando. Então um dia o padrasto veio. E a faca veio junto - a um dedo da fuça, bem no meio dos olhos. Reluzia na noite, clareando de morte, a achada. O homem assustado fugiu sem nem mesmo chiar, todo amarelo, cagado de medo. No dia seguinte quando ela voltou do trabalho lá estava sobre o travesseiro: o coturno 36, brilhando de engraxado.

Patricia Porto


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