segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Estátua viva



Já havia visto aquele homem diversas vezes, sempre no mesmo local: a grande entrada de um parque próximo de casa, onde se apresenta ao público.

Calvo, estatura mediana, magro e um grosso bigode. Com a cara, a cabeça e as duas mãos inteiramente pintadas de prata, a mesma cor de seu terno puído, ele trabalha como estátua viva, dessas que surpreendem os simples de coração, especialmente crianças e idosos, fazendo um leve salamaleque em reverência a quem lhe deposita moedinhas na pequena caixa de papelão à sua frente.

Essas figuras sempre cativaram minha atenção e comiseração. Não apenas porque fico a imaginar a sede e o calor infernais que suportam debaixo de sóis torrenciais, mas especialmente porque sou incapaz de ficar mais de um minuto em pé sem que me doam as costas ou as pernas. Imaginem então horas a fio como eles ficam, tão imóveis que até os movimentos torácicos tornam-se quase imperceptíveis.

A atmosfera enigmática por trás daquele semblante prateado sempre me atraiu também. Algumas vezes, ao passar por ali, peguei-me pensando como seria a vida íntima daquele sujeito calvo, prateado e visivelmente triste. Não há mesmo meios de se imaginar como pode ser feliz um homem em pé, em cima de um caixote, que se abaixa ao tilintar de qualquer moedinha que lhe oferecem. E faz disso a sua rotina diária.

Pois hoje, agorinha mesmo, vindo para casa, testemunhei com um grande incômodo a cena que eu jamais pensei em ver: o relógio marcava mais de oito horas da noite do domingo quando, sentado no ponto de ônibus em frente ao parque, vi aquele homem. Com o rosto ainda prateado, sua expressão era só cansaço.

Já lavei o meu próprio rosto por duas vezes e não saiu da pele a sensação de coceira pelo excesso de tinta prata num dia de sol. Aliás, não saem de minha retina as cenas que não vi, daquele homem pagando o ônibus com moedas de centavos recebidas a tão duras penas, daquele homem chegando em casa e beijando esposa e filhos à distância para não lhes sujar os rostos de prata, daquele homem deitando em sua cama para descansar costas, pernas e pés moídos por tão árdua tarefa. Daquele homem cerrando os olhos e só os abrindo no dia seguinte, percebendo que dormira sem tirar a tinta do rosto de tão exausto que estava.

E com as mãos ainda prateadas, o homem prepara o café, retoca a maquiagem prata no rosto triste e sai ainda de madrugada para mais um dia de trabalho.

Sai na verdade a enfrentar, com a alma endurecida de uma estátua quase sem vida, uma outra segunda-feira em sua vida cinza.

Cinza como a prata.

Fernando Augusto Martins Canhadas


Um comentário:

Sylvio Mário Bazote disse...

Tocante!
Como a crueza e a beleza se misturam às vezes, sem que percebamos!

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