quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Ela era um paredão de mistérios



Quando o relógio em forma de oito marcava o parimento da aurora, antes que alguém da casa abrisse portas ou janelas, e o começo das coisas ainda era reino da intuição, os quartos marcados pelos roncos dos adultos e os travesseiros molhados de baba de pré-adolescentes, minha tia Luzia se levantava, apanhava o terço e o livro engordurado velho de rezas, acendia o fogo, arregimentava os utensílios, dizia "ferve água, pula o pó pra dentro do coador, coa café" e esperava. Esperava.

Enquanto o canecão não fervia, abria o livrinho na reza para algum santo do dia e apertava os caroços do terço para a caminhada de repetições de aves-maris e padre-nossos no rumo dos mistérios e estações. Enquanto rezava, vibrava o tronco para frente e para trás, marcando o compasso de uma invisível cadeira de balanço. No primeiro mistério contemplamos...

A água fervia, mais ou menos na metade da trilha do rosário, borbulhando em recitações. Sem interromper o ritmo da oração, em uma das mãos a corrente de contas que habilmente manejava e, na outra, atarefava-se com a preparação da bebida, que fumegava pela casa, rescendendo a incenso de acordar os adormecidos. Terminada a reza e a depuração da bebida e aromas, arrumava a mesa com toalha de plástico e canecas de ágatas verdes, uma cesta de pães amanhecidos e uma fruta, quase sempre mamão.

Dirigia-se para a varanda. Sentava-se num pilão e acendia um baforante, olhando o amanhecer. Um rádio do vizinho passava a transmitir músicas de calangos, sertanejos, canções de violeiros. Durante 30 anos, do que me lembro, esse era seu imutável ritmo. Nunca se casou. Nunca falou de seus amores. Nunca indagava da vida de ninguém. Era um paredão de mistérios. Do que me lembro, além de trabalhar por opção feito uma serviçal eterna, eu conseguia capturar um ou outro momento de encantamentos, raros, pois sua rígida personalidade evitava demonstrar qualquer emoção. Um deles era exatamente este olhar matinal para o infinito, em tons de rosa e azul de papel de seda, quando parecia olhar e sorrir, leve sorriso de Mona Lisa. O infinito lhe penetrava a alma, e ela aquiescia. Aos humanos, não, era bondosa e gentil com todos, sem se entregar por inteira. Uma pessoa que esperava, e esperava, e esperava.... isso deve ter sido o seu grande segredo.

José Antonio Abreu de Oliveira


Crédito da imagem: pintura de Rui de Paula




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