Certa vez, meu velho volks cor de laranja enguiçou num atoleiro defronte uma casinha dessas de cafundós. Não tinha jeito, era madrugada, vinha de um baile na roça, tarde demais para pedir socorro. Mas uma lamparina se acendeu dentro da casa e um casal de idosos esticou os pescoços por meia fresta.
- Agarrou? gritou o senhor.
- Não, acho que estragou qualquer coisa, neste escuro não dá pra saber. O carro não dá sinal de nada. É na parte elétrica.
- Vamos empurrá-lo pra beirada da estrada, amanhã cedo o senhor procura auxílio, já está quase amanhecendo. O senhor se aquiete aqui em casa, até que possa receber ajuda.
Conseguimos ajeitar o carro no quintal da casa, de qualquer jeito, removendo-o do meio da estrada. Um frio de doer. Mas, sujos de barro, mesmo assim lavamos as mãos, os pés e as pernas para entrarmos na casinha de pau-a-pique. O senhor me passou um saco de estopa limpo, me enxuguei como pude e, pedindo mil desculpas, entrei na cozinha, onde a esposa já esquentara um café e providenciara umas broas de milho.
- O senhor pode descansar ali no outro quarto, era do meu filho, mas ele já se casou, moramos sozinhos, pode se ajeitar lá e amanhã cedo o senhor achará ajuda numa oficina de estrada perto daqui, não se preocupe. Mas tem um porém, se o senhor não se incomodar, tem uma cestinha com 5 patinhos dentro, que a gente cobre com a coberta, porque a mãe deles morreu, e estamos cuidando deles dentro de casa, é só o senhor se cobrir e cobri-los também, para que não sintam frio.
Iluminei o quarto com a lamparina que me ofereceram e lá estava a cesta, com os patinhos, no canto da cama, cobertos com uma humilde colcha de lã grosseira. Tratei de me ajeitar ao lado para não provocar nenhum susto nos patinhos, mas não houve jeito, começaram a piar, sei lá se a gente fala piar, grasnar é que não era, um sonzinho de flauta de bichos pequenos, mas de repente uma orquestra sinfônica.
- Psiu!Calma! Psiu! Papai chegou, calma! balbuciei. O casal parecia rir no outro quarto.
O certo é que me acomodei como pude, a coberta mal me cobria os pés, abracei o cesto, senti beliscões fraquinhos nos dedos, mas nos ajustamos todos e, em breve, a sinfonia parou, tudo era silêncio na pequena morada. Não devo ter dormido por longo tempo, duas ou três horas, talvez, mas sono profundo porque já me sentia revigorado. Contudo, meu braço estava dentro do cesto, os patinhos subiram pela manga do paletó e se embolaram na altura da minha barriga, mó conforto, quentinho ali, parecia. Notei que já rolava umas conversas na cozinha, e a manhã surgira entre os vãos das telhas de barro. Tentei levantar-me e colocar os patinhos de volta ao cesto, mas...qual o quê...não queriam, relutavam, tentavam pular a cesta de volta para o novo ninho, aquele improvisado na altura do meu umbigo. O senhor apareceu, contei-lhe a história e ele nem estranhou:
- Vez em quando, quando faz muito frio, a gente deixa eles dormir conosco. Esses patinhos a gente vai vender quando crescerem, por isso não podemos deixá-los ao relento. Temos que garantir que sobrevivam.
Tomei o café que coaram, conversei um pouco, agradeci e me despedi. Tentei deixar-lhes algum dinheiro, pela ajuda e hospedagem, mas se negaram.
- Tamos nesse mundo para ajudar o próximo, a não ser que o senhor queira comprar um patinho, sei lá, às veiz o senhor gostou deles. Eu o olhei sério, pensando no que responderia, não queria um patinho de jeito algum, mas me senti na obrigação de comprar para retribuir a cama e o cobertor, só não encontrava palavras, engasgado que estava.
Então, ele disse:
- É brincadeira! E se abriu num sorriso! - A gente não vende eles não! Vai, vai procurar a oficina, o senhor vara uns dois quilômetros daqui, pode ir, que eles já estão acordados.
Ufa, respirei aliviado. O que eu faria com um patinho dentro de casa? Socorro!
Que baile! E o pior...estava bem desanimado, pouca gente, não beijei ninguém e ainda fui pai de cinco bicudos amarelos. Acontece.
José Antonio Abreu de Oliveira
Imagem Pinterest
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