sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Eu era a que menos luzia




No dia em que cheguei havia poucas ruas na Villa Madre Della Guardia. As tardes eram nuas e suadas, cada mulher casada tinha dois ou três amantes. Um calor tão intenso que ao mínimo sussurro do sol as demãos de tinta das janelas crestavam. Eu era magra e andava descalça, das tardes, era a que menos luzia (ao cair da noite). Eu era magra e era cega, meu cão guia também, cego e esquálido. Eles riam. As casadas e seus amantes e, com os maridos, à noite, me cuspiam. Eles diziam, homens e mulheres e crianças, que das tardes, eu era a de mais alta nuvem (de poeira). Não tinha sapatos, era esquálida e sem palavras, motivo pelo qual eu e o cão nos abrigamos no cemitério dos judeus, entre os mortos suicidas e comunistas sem falanges ou dentes. Era uma mulher magra, nua e cega e, por poeira, acinzentada. Vivia com um cão vira-latas cotó de uma pata e morava num mausoléu abandonado pelos genes. Se tive nome um dia, não lembro, nem pai, mãe ou irmãos. As tardes polvorosas levam as memórias para longe, mas as próprias, as tardes, delas mesmas, pouco levam. Da poeira da tarde pouco se lava embora com alarde e insultos ardentes muito se espana. As tardes varrem a poeira das ruas e das calçadas. Os amantes lavam o tédio em suores e salivas às tardes e, por ser quase sempre tarde, perto, muito perto, da hora da realidade, com algum cinismo, pouco se lembram.

Fabíola Lacerda



Crédito da imagem: Greta Garbo em cena do filme Flesh and the Devil




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