segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Questões de viagem



 ...

pensemos na longa viagem de volta.
devíamos ter ficado em casa, pensando nas terras daqui?
onde estaríamos hoje?
será direito ver estranhos ensinando uma peça nesse teatro tão estranho?
que espécie de infantilidade é essa que, enquanto há um sopro de vida nos nossos corpos, nos torna determinados a ver o sol nascendo do outro lado?
o menor beija-flor do mundo?
observar algumas inexplicáveis e antigas construções em pedra,
inexplicáveis e impenetráveis,
ou qualquer paisagem,
imediatamente vista e sempre, sempre, prazerosa?
por que insistimos em sonhar os nossos sonhos e vivê-los também?
e será que ainda temos lugar para mais um pôr do sol extinto, ainda morno?
mas certamente seria uma pena não ter visto as árvores à beira dessa estrada
de uma beleza realmente exagerada.
não tê-las visto gesticular como nobres mímicos de vestes rosa.
não ter parado num posto de gasolina e ouvido a melancólica melodia de madeira,
com duas notas só,
de um par de tamancos descasados, pisando sonoros, descuidados,
num chão todo sujo de graxa.
(num outro país os tamancos seriam todos testados.
os dois pés produziriam exatamente a mesma nota.)
uma pena não ter ouvido a outra música, menos primitiva,
do gordo pássaro pardo cantando em cima da bomba de gasolina quebrada,
numa igreja de bambu de um barroco jesuítico.
três torres.
cinco cruzes prateadas.
uma pena não ter ponderado,
velada e inconclusivamente,
sobre que conexão poderia haver entre os séculos do mais tosco sapato de madeira,
aos caprichosos, meticulosos e fantásticos entalhes das gaiolas de madeira.
jamais ter estudado história na caligrafia fraca das gaiolas
e nunca ter ouvido essa chuva, tão parecida com discurso de político,
com duas horas de oratória implacável e, de súbito, um silêncio de ouro,
em que a viajante abre um caderno e escreve.
será falta de imaginação o que nos faz procurar lugares imaginados, tão longe do lar?
ou pascal se enganou quando escreveu que é em nosso quarto que deveríamos ficar?
continente, cidade, país, sociedade…
a escolha nunca é ampla e nunca há inteira liberdade.
aqui, ali.
não.
teria sido melhor ficar em casa, onde quer que isso seja?

Elizabeth Bishop



Crédito da imagem: by Etienne Aigner






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