sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Tenho mais de 60 e menos de 70 anos

 

Tenho mais de 60 e menos de 70 anos.
Mulheres de minha idade entram num limbo hormonal complicado difícil de ser entendido pelos melhores especialistas do ramo.

As unhas enfraquecem assim como os cabelos.
Os joelhos insistem em doer e os olhos pedem óculos com graus diferentes para longe, perto, cinema, jornal, buracos da prefeitura.

Isto tudo se você não se olhar no espelho e evitar reparar como seus dentes escureceram, encavalaram, a boca murchou, e, pior! os lábios carnudos foram tragados pelo
beijo traiçoeiro do estômago.

Somos invisíveis para uma grande parcela da população e soco de areia para outros praticarem seus pequenos ataques de descarrego neurótico.

Aos poucos estou me acostumando a viver nesta zona de desconforto.
Sei que tenho poucas chances de me defender com sabedoria das provocações diárias.
Minhas respostas inteligentes chegam com retardo de minutos.
Às vezes, de horas.
Ou de dias.

Na maior parte das vezes que me deparo com um desaforo, viro uma arara.
Engrosso, perco a razão, dou margens para quem cometeu o desacato sair coberto de razões.

Poucas são as mulheres que conheço que possuem línguas afiadas como adagas de dois gumes e cravam um golpe certeiro nas ofensas desferidas contra a vantagem maior da vida que é envelhecer com saúde.

Por favor, não discutirei argumentos do tipo “os homens também passam pelos mesmos problemas, eles é que não se enxergam”.

Não escrevi este textinho para falar mal de ogro algum.
Vim contar para vocês, mais uma vez, o que acabou de acontecer comigo...

Fui vítima de duas mocinhas na faixa dos 25 anos.

Estive, na parte da manhã, no meu oftalmologista.
Sofro de uma encrenca no meu olho direito.

Saí de lá com a pupila dilatada.
Um pouco difícil caminhar pelas ruas.
Entrei numa galeria ao lado.

Liquidações... quem sabe aquele vestidinho fresquinho ali cabe em mim?

Entrei.

Fui recebida por uma emudecida recepção.

- bom dia!
Alertei que existia.

A mocinha franziu a testa e fez um gracejo:
- a senhora entrou na loja errada.

Recuei poucos passos até a vitrine.
Não era uma Farmacia, petshop, Casas Pedro, Hortifrutti.
Não estavam expostos legumes, remédios, esparadrapos, ração, quibes e esfihas.

Voltei, perguntei:
- aqui não é uma loja de roupas femininas?
- sim...

Forcei a tal calma que não possuo.

- gostaria de saber por quê motivo você disse que entrei na loja errada?

Com a petulância que a ignorância produz sobre certas pessoas, a garota insistiu:
- porque esta loja não tem nada que cabe na senhora. O público alvo desta loja é gente jovem e não pessoas idosas.

Ok.
Não sou de peitar ninguém debaixo de 42 graus.

- você pode fazer a gentileza de chamar sua gerente?
- pra quê?
- assunto confidencial, por favor.

Surge do fundo da loja uma garota tão jovem quanto a outra. Mesmo cabelo de chapinha, mesmo shape de bundinha arrebitada, cópia do mesmo biscoito doce.

Sou obrigada a admitir:
- putzzz, o Brasil vai mal.

Expliquei à gerente a maneira como fui recebida pela vendedora.
- não foi legal... E se eu tivesse vindo comprar um presente para minha neta? Para minha sobrinha, para uma amiga? Ela teria o direito de falar comigo daquele jeito?

Senti que minhas palavras esbarraram num paredão.
Não havia pedido de perdão em seus olhos.
As palavras que saíram de sua boca foram um amontoado de frases feitas sobre metas de vendas.
A gerente confirmou não se importar em perder uma freguesa.
Preferia não sujar a beleza de sua loja com a presença de uma múmia egípcia.

A sociedade brasileira envia mulheres acima dos 65 anos para a quinta dimensão, fora do tempo e do espaço.

Ali elas devem permanecer.
Comedidas.
De preferência, caladas.
Sem opinar nas conversas.
Bibelôs craquelados, sem valor de mercado.
Cacarecos que admiram a estupidez que avança.

Angela Mucci Bosco, 2019



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