Houveram madrugadas frias em que a gente acordava com uns barulhos na varanda, as cadeiras de ferro sendo deslocadas, uns muxoxos, uns xingamentos e, depois, tudo silenciava. Meu pai olhava pelo buraco da fechadura e dizia, voltem pra cama, é a Niquita.
Apanhava um pão, uma caneca de café e levava para a mulher, que se escondia do vento algoz. Dava-lhe um cobertor, ajeitava melhor o espaço, e, ali, Niquita adormecia. Estava em pleno surto, que a fazia fugir de casa, vagar pelas ruas, pano de chita transformado em lenço, cachimbo à boca, declamando versos, quadrinhas populares, "andorinha no coqueiro, sabiá na beira-mar, andorinha vai e volta, meu amor não quer voltar".
De manhãzinha, partia. Esta noite - tive um sonho, mas que sonho atrevido, sonhei que era o babado da barra do teu vestido. E, resmungando, travava uma briga com o nada, pelos caminhos mais ásperos do mundo. Ora aqui, ora acolá, alguém lhe oferecia um prato de comida. A criançada zombava e ela respondia com pedras. Por incrível que pareça, adorava bebês e se iluminava ao vê-los nos braços das mães. Mas, passado o embate com a molecada arrogante, rememorava: "eu coloquei o meu nome, no teu relógio, querida, faça agora o que quiser, das horas da minha vida".
Parecia ter um só vestido, tão amarrotado e usado como a sua dor. "A cachaça é moça branca filha de mau companheiro, quem se fia na cachaça morre cedo e sem dinheiro". Uns diziam, ela não é pidona, é louca mansa, outros, que as autoridades deviam levá-la para o sanatório, o certo é que, de repente, Niquita desaparecia da cidade, levava semanas sem que ninguém soubesse dela, até que voltávamos a ouvir as cadeiras de ferro movendo-se na madrugada. Com jeito tudo se arranja, de tudo o jeito é capaz, a coisa é ajeitar o jeito, e isso pouca gente faz.
Seu pai, um negro alto e magro, com a mão torta, trabalhador de cafezais, não podia cuidar dela. Quando lhe perguntavam da filha, ele olhava um ponto inexistente à frente, ou que só ele via. Falava: — Ela é a minha estrela preta. - E silenciava o assunto.
Niquita foi envelhecendo assim, e cada dia sumindo mais e mais. Dessas pessoas que a gente não pode descrever o fim de sua história, uma brisa leve que ninguém sabe onde se escora. Por algum motivo, deixa marcas ao contrário, pegadas opostas, avessos de nuvens. "Se vires a tarde triste, e o ar a querer chover, saiba que são os meus olhos, que choram por não te ver".
José Antonio Abreu de Oliveira
Crédito da imagem: "The Madwonan", arte de Giacomo Balla
Nenhum comentário:
Postar um comentário