sábado, 4 de abril de 2020

Imigrantes



 Eu não moro mais aqui/ Nem aqui quero morar/
Ô beira-mar, adeus dona,/ Adeus riacho de areia”.

Coral Trovadores do Vale

“Quando ao longe me voltei/ a minha casa/ era um ponto branco”

José Tolentino Mendonça

Imigrantes

Para minha vó Corina e sua casa no vale


Na primeira vez que regressamos
a casa ainda estava de pé.
Os telhados cantavam
pássaros cobriam as janelas.

Se não fosse o silêncio lá dentro
ninguém saberia que aqueles quartos
estavam desabitados.

Quando a vizinha nos avistou
fez uma festa danada.

Ela contou que o ano foi bom.
_choveu muito e a roça cresceu,
Deu até abobras d'água!

Todos sentimos tremenda saudade!

Na segunda vez que regressamos
a casa seguia de pé,
já os telhados não cantavam
haviam ido de encontro ao chão.

A vizinha já não se lembrava de tudo
haviam transcorrido tantos anos.
Daqueles que sentiram saudades
poucos restavam.

Na terceira vez que regressamos
a casa tinha perdido a cor.
Janelas e portas estavam rachadas
e a vizinha nada pode contar.

Também ela havia partido
fez-se silêncio, memória apagada.
Foi então que nos sentimos estranhos
onde  tinha sido o nosso lar.

Na quarta vez que regressamos
a casa já não existia,
só as ruínas perduravam.

A luz trêmula alumiava na memória
a criança jogando bola,
o mesmo rio corria lá embaixo
mas em nós, algo havia mudado.

Um menino nos perguntou
- ocês quem são?
Vovó espantada tratou de responder:
- sou a dona daquela casa!

A tristeza abriu-lhe um rasgo
quando ouviu a criança  responder:
- minha senhora, nunca teve casa aqui!

Só naquele dia percebemos
o tempo escorrido em nossas viagens.
Nossa geografia havia  mudado
pertencíamos a outro lugar.

Na quinta vez que regressamos
havia passado muitos anos
nem me lembro quanto tempo.

Levei  vovó dentro da saudade
mamãe não regressou.
Minhas irmãs não se lembravam
que tínhamos nascido lá
e meus sobrinhos sequer ouviram falar.

Cansado me sentei à sombra da goiabeira
fiquei pensando nas andanças perdidas.

Lembra-se daquela criança?
Também ela sentou-se comigo.

Trazia em mãos as roças engomadas
vestia um terno de idades
tinha  os dedos calejados.

- senhor, que faz aí sentado?
outra vez me perguntou assombrado.

Ao ouvi-lo debrucei-me na terra
tentei  do alto comer os bocados
para agasalhar as  grotas que me abriam
a falta dos meus antepassados.

Vi o rio descendo o morro
a cana crescendo na margem do córrego
o pai tocando o gado
a mãe comendo laranja.

- Seu moço trate de me escutar
pois não vou dizer outra vez,
faço o mesmo que a minha vó
sou herdeiro daquela casa.

Enquanto me rasgava a palavra
apontei o balanço dependurado.

- Era ali que brincávamos!

Também ele trazia o olhar cansado
desesperado de tanto viver.
Naquele dia ele pode me entender
pois já seu riso estava trancado.
- Senhor, aquela casa era minha casa,
eu também fui parido ali!

Na fotografia daquele moço
cresciam paisagens de outros lugares.

Na sexta vez eu não regressei.
Da casa nem memória restava.

Não tive tempo de contar aos meus netos
que ela era azul,
não falei da roseira à beira da janela
por onde eu cheirava o mundo
nem da goiabeira no quintal.

É a mesma goiabeira
debaixo da qual um homem senta
tira a flauta da garganta
e põe-se a cantar versos tristes.

Quando alguém pergunta o que ele faz;
responde  ciscando o tempo:
- busco aquela casa
perdida em outro mapa.

Na sétima vez ninguém regressou
meus filhos já estavam partindo
 meus netos pertenciam à outras paisagens

a casa terminou de morrer
pois dela  ninguém sentia saudades.

Sandrio Cândido




Imagem via World in Photo



 




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