sábado, 23 de maio de 2020

Feitiços e feiticeiros



Uma estrada de chão, a ponte, o sol do meio-dia. Na margem do rio, gordas capivaras. Há filhotes escondidos entre os corpos estendidos na areia. O jipe cruzará a ponte? É preciso descer e averiguar se foi avariada pelas fortes chuvas. O local é ermo.

Aparece a velha senhora, com feixe de lenha às costas. — O senhor não atravesse que a ponte está podre por baixo, a enxurrada de ontem enfraqueceu mais, só dá para passar a pé. O homem, pensativo, desiste da travessia com o carro. Precisa se encontrar com alguém da outra margem.  Decide ir sozinho, caminhando, enquanto espero no jipe. Sou o guia, sob o sol incruento do verão. Tenho onze anos e o homem me prometeu uma grana. Aquela solidão dos limites dos três estados me incomoda. Só por dinheiro me aventuraria ser guia por lugares tão ermos.

Ele atravessa a ponte, que balança. Fico a conversar com a velha camponesa. Quem ele procura? Ela quer saber. Um tal Aniz da Grota, respondo. A velha se benze. Feiticeiro, ele, não é boa gente. Mora logo adiante daquele campo de futebol, bate caxambu toda noite. Prefiro meus caminhos com o senhor Jesus, não gosto desse um tal. Cachaceiro. O que seu amigo quer com ele? Boa coisa não é, pedido de alguma maldade, com sangue de galo e mafuás. Só bobagens, o que o dos altos empíreos designa ninguém faz ou desfaz.

Não, este senhor é do banco, veio ver alguma coisa de terrenos à venda, entendi assim.

Esse menino, ela me diz, veja onde você está, no centro do estrelo, encruzilhada, você se afaste para não pegar os malefícios, toda semana tem frango degolado aí, cachaça, charuto. Melhor você sair. Olhei para o terreno, onde jaziam restos de carvão, manchas escuras, penas de aves, cacos de vidro. Não tinha reparado. Não acredito nestas coisas, mas algo em mim diz para não arriscar com as energias do universo. Espere, esbraveja a senhora, coloque isso no seu bolso. Achei lá no morro, levava para minha casa. Se chama angélica. E me entregou uma erva que parecia um amontoado de galáxias, divididas, flores brancas de odor agradável. Contra feitiços. Por aqui tem muita babosa, alá uma, acolá, ali. Te protegerá também, vai limpar as energias. Olhe aos seus pés... Uma margaça, que chamam camomila... Ajuda, bota atrás da orelha enquanto estiver aqui. Se olhar bem, a gente acha outras coisas... Mas com essas três você estará ungido. Olhalá, uma macela, e adepois, os malvariscos. Colhe e coloca no carro, pra proteger seu amigo, que virá carregado de maldição. Há plantas que matam, outras que salvam. Tem de tudo no mundo abaixo de Deus. Aqui, nas lonjuras, é as erva que nos salva. Conheço muitas. Me viro com a salvação delas. Disse, e partiu pelo caminho no meio do capim. Tinha uma porteira, que ela abriu, que parecia se abrir para o céu azul, o horizonte depois, para um sem fim.

Entrei no jipe, olhei as capivaras sonolentas mais abaixo, esperei por mais de hora, esperei, até que o homem do banco voltou. Demorei porque o sujeito resolveu me benzer, contra uma velha que existe por aqui, que segundo ele é feiticeira braba, do mal. Que deixa um rastro peçonhento. Ele até me deu essa garrafada para beber, explicou o sujeito, se rindo todo. Tem gosto de erva-doce, estou protegido. Tudo se resolveu, vamos embora. E ligou o carro, que se assanhou pelas estradas esburacadas, sacudindo mais que burro brabo, a verdade é uma busca por minúcias, e sempre se oculta. A verdade depende do lado do rio.

José Antonio Abreu de Oliveira



Crédito da imagem: desconheço a autoria


 


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