segunda-feira, 29 de junho de 2020

Poema estilhaçado


 

É cedo. No café ainda sonolento só estou eu, na mesma mesa de sempre, escrevendo no meio do silêncio das mesas vazias. Gosto de começar o dia assim, virada para dentro de mim, à procura do poema que hoje esvoaça num roçagar de asas inquieto porque me fogem velozes as palavras. Subitamente, a empregada deixa cair com estrondo a pilha de chávenas que carregava e elas estilhaçam-se em mil pedaços salpicando de branco o chão de tijoleira negra. O ruído foi inesperado e ensurdecedor. Ela levou as duas mãos à boca para amparar o grito abafado e leio-lhe a frustração, o susto, o cansaço. Os seus olhos procuram-me, pedindo desculpa pelo desastre e eu sorrio-lhe. Tem os cabelos escuros que usa escorridos sobre os ombros e as mãos grossas e maltratadas cheiram sempre a lixívia quando, sem que seja preciso pedir, vem pousar-me o café na mesa com os olhos sorridentes. Conhecemo-nos há muitos anos. Sempre que estamos só as duas, vem varrendo devagar na minha direção e encosta a anca redonda à borda da mesa, procurando o pretexto para a conversa, perguntando-me se estou a escrever outro livro, se quero um amanteigado quentinho ou uma meia de leite, numa preocupação genuína com o facto de eu nunca comer. Que tenho que me alimentar, diz muitas vezes. Que ando com olheiras e um ar cansado, que emagreci, que não devia escrever tanto porque fico com a cabeça cansada... Às vezes fala-me do filho, que é bom nos números mas se troca todo nas letras, e nascem-lhe umas ruguinhas de preocupação na testa a contrariar o sorriso sempre aberto, sempre pronto, sempre meigo. Nesses momentos, fala sem parar, conta que que não sabe o que vai ser dele, que não sabe como ajudá-lo a ser alguém na vida, alguém diferente dela, que tenha estudos suficientes para não precisar de varrer o chão, servir às mesas ou lavar louça num café. Cansado da vida no mar, o marido partiu há muitos anos para a Suíça e ela sente-se só apesar do skype, das sms cada vez mais raras, das rápidas visitas em agosto... Veja lá, professora, este ano ele esqueceu-se dos meus anos... É uma vida só de tristeza e de trabalhos... E com os olhos marejados de lágrimas, pegou na vassoura e começou a varrer devagar, arrastando os cacos num tilintar cristalino, pedindo desculpa de novo pela perturbação e pelo barulho. Rapidamente o chão recupera a negrura inicial e ela afasta-se para a cozinha com o apanhador cheio de cacos, não sei se de louça, se do seu coração, com os ombros descaídos resignados com o acidente, insatisfeita consigo própria e com o desastre do seus gestos.
 Retoma-se o silêncio e estou outra vez só. Em cima da minha folha há um caco branco pequenino que pretende decerto entrar no meu poema, fazer-se presente nesta manhã que agora começa. Dou-lhe então abrigo, deixo-o ficar no meio dos meus versos e pouso a caneta. Escorrego de novo para dentro de mim e aninho-me desconfortavelmente, algures, entre as rimas do meu poema definitivamente  estilhaçado. Como o coração da empregada, solidariamente estilhaçado.

Ana Mateus



Crédito da imagem: Arte de Edward Hopper 







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