terça-feira, 28 de julho de 2020

Tudo o que não digo



Não me leias as palavras. Lê antes os meus silêncios, a voz suspensa no avesso dos lábios, os gestos que me escorregam das mãos quando me julgo a sós comigo. Lê os meus passos lentos, subindo e descendo as escadas sem ruído, no fim de um pesadelo que me deixa o coração sufocado de terror. Lê a minha alegria quando ouço as aves ao amanhecer, ou adivinha-a nas mãos cheias de terra negra e molhada das raízes das azaleias que plantei no jardim. Lê-me no rosto cheio de chuva, nos caracóis dos cabelos desalinhados pelo vento quando recolho a roupa do varal, no brilho dos meus olhos sempre que abro a porta do forno e rego o assado com vinho tinto, no doce de maçã com canela da receita da minha avó. Lê-me na ternura das mãos tranquilas quando acaricio o gato, enroscada na música do ronronar tão calmo... Lê-me nos caminhos por onde ando, nas conchas e nos búzios que roubo ao mar, nas danças dos meus pés ao cair da noite antes da casa adormecer suavemente. Lê-me na saudade inconsolável dos meus mortos e na forma como amo os vivos, lê os meus erros e as minhas derrotas, as esperas pacientes e infinitas, lê as minhas pequenas vitórias. Lê-me quando eu tombo, derrubada, e também de todas as vezes que me reergo ferida.

Não me leias nos poemas, na prosa, nas frases riscadas à pressa na lista das compras, nas folhas que deixo ao abandono, nos desenhos que o meu dedo traça nas vidraças embaciadas.Lê o meu corpo, quando me encosto às sombras de olhos fechados, lê o rastro do meu perfume no corredor da casa. Lê o que não digo, todos os dias. Lê o que não escrevo, meu amor.

Ana Mateus


Crédito da imagem: Nirav Patel Photography





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