Quem é o inimigo?

 

 

Choveu toda a madrugada e chove ainda. Todas as tarefas do dia serão úmidas, desviantes de gotas, sobressaltos com respingos. Olho pela janela, o mundo similar ao aquário solicita um escafandro e coragem para sair. Um lago sem peixes, mas repleto de humanos crustáceos se movendo ao solo, preso à gravidade. Sinto-me um camarão que perdeu a cabeça: tarefinhas bestas molhadas, ir ao banco, pagar contas, abre e fecha guarda-chuvas, essas barbatanas. Cumpro, mas não é algo que me dê prazer. Contudo, ontem, o banco expulsava gente pelo ladrão, muita, filas intermináveis. No meio delas, fiquei. Maior parte aposentados, funcionários da prefeitura, pensionistas provando que estão vivos. De início, irritei-me. Mas, ao inexorável, baixei guarda e apurei os ouvidos no parlatório das filas que se entrecruzavam, duas para caixas eletrônicos, uma para atendentes humanos. Os assuntos mais variados. As mulheres conversando seriedades. Os homens, assuntos desembestados, uns sacaneando os outros, em brincadeiras e tiradas absurdas. A gente masculino é meio infantilizado mesmo, inventa tudo para fazer graça e aguentar o tranco. Somos pobres e feios, vestimos mal. Todos precisamos um upgrade da medicina moderna, mas... diante daquela massa de assalariados, confesso o meu lado cristão, o povo é bonito, se a gente deixa preconceitos de lado e enxerga o que sobreviveu renitente dos sonhos de cada um. Me pergunto se teria solução que nos fizessem mais bonitos e perfumados, belos, saudáveis, suportáveis, enfim. Sim, a gente sabe que tem, mas o inimigo... quem nos deixa feio... quem nos engoliu e estamos em sua pança, dependente dela, é o próprio banco! Somos a carne mordida e retaliada, em fila, descendo em fila pelas tripas do monstro.

Bom, não sei se é apropriado agora dizer bom-dia e voltar ao banco, por necessidade premente. Não me sinto confortável. Soa estranho. Mas não custa nada desejar bom dia, isso ainda não tem preço fixado de tarifa. E faz bem, sei lá o motivo, nos deixa mais leve compartilhar um desejo de bom dia.

 

José Antonio Abreu de Oliveira