segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Barco negro


 

Na minha cidade, na semana passada um pescador desapareceu quando o barco em que pescava foi frágil demais perante a força das águas do mar revolto e irado. As praias encheram-se de gente curiosa, de amigos, de familiares, de profissionais que têm usado todos os meios terrestres, aquáticos ou aéreos para resgatar o corpo do jovem homem. Dias houve em que a força das correntes e a altura das ondas alterosas tornaram impossível que alguém entrasse no mar, que sequer o desafiasse... Restava aguardar. As praias têm sido policiadas numa atitude de passividade, a única possível, na esperança de que o cadáver dê à costa. Li num dos jornais locais que a mãe do pescador desaparecido permaneceu longo tempo sobre a areia, louca de dor, chorando e gritando, implorando ao mar sagrado que lhe devolvesse o seu menino... Possivelmente a mulher e os filhos contarão as horas do dia e da noite, imaginando o corpo amado aos tombos na água gelada, desfazendo-se aos poucos, ou encarcerado nas profundezas do oceano... E a mim parece-me uma dor infinita, esta de não se ter a certeza se aquele que amam lhes será devolvido algum dia, nos próximos dias ou quem sabe, nas próximas horas... É uma dor sem fundo... como o mar infinito e sagrado cujos confins se desconhecem mas que nós homens, mesmo assim, nos atrevemos a desafiar. A mim parece-me uma dor negra e sem fim, a da espera noite após noite, de olhos abertos no escuro, numa eterna e desesperada oração, pedindo a Deus ou à água negra que deite fora aquele que roubou ao coração de quem o ama tanto. Pelo menos para que o vejam pela última vez, se despeçam dele e o devolvam à terra que o transformará em pó. Porque quem o ama sabe que só assim ele descansará em paz. 


David Mourão- Ferreira

 

Imagem da Web

 

 

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