sábado, 19 de dezembro de 2020

Atravessar a Própria Solidão


 
A cultura contemporânea deixou de preparar-nos para a solidão. Na maior parte das vezes, essa é uma aprendizagem que temos de fazer em cima dos próprios acontecimentos ou na sua dolorosa ressaca, e de forma muito desacompanhada. É como se a solidão fosse uma eventualidade improvável na experiência humana e não, como é, um ponto de passagem obrigatório e comum.

Lembro-me de uma frase de Truman Capote que transcrevi há anos para um caderno: «Todos estamos sozinhos, debaixo dos céus, com aquilo que amamos.» Em momentos diferentes da vida, tenho regressado a ela, e sinto que ainda não me revelou a extensão integral da sua verdade.

Esquecemos que todos os dias, mesmo numa vida afetivamente integrada e febrilmente ativa, a solidão nos visita.
Estamos sós quando estamos conosco próprios e em companhia.
Estivemos sós em crianças, na transbordante juventude e nas décadas da vida adulta, e estaremos assim na nossa velhice.

A amizade e o amor são formas de partilhar, diminuir, dar serenidade ou potenciar criativamente a solidão, mas o seu assobio ininterrupto continuará a fazer-se ouvir na ronda magnífica dos amigos ou no abraço redondo dos amantes. Ela perfura tudo. Recordá-lo é humanizar o nosso olhar sobre a realidade.


José Tolentino Mendonça
in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'
 
 
 
Lina Aiduke Photography
 
 
 
 

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

...