sábado, 5 de fevereiro de 2022

Diário

 

 

Faço a cama todos os dias, tento preservar a ordem do meu mundo. Lavo pratos, copos, talheres, quero dizer, enfio-os na máquina. Mantenho limpos os vidros das janelas. Lavo o corpo, os dentes, a roupa, do corpo e da cama, quero dizer, enfio-a na máquina, há máquinas para tudo. Não moro sozinha, moro com dois gatos e vaso nenhum com planta.
Compro os víveres no supermercado. Chego a sexta-feira com uma garrafa de vodka e duas maçãs mirradas no frigorífico.
Já plantei couves, alfaces, árvores de fruto. Já escrevi cartas ridículas, tenho esta estranha mania de ser sincera. Tenho vergonha de erros ortográficos. Valorizo a etimologia.
Tento perceber o oposto de todas as coisas, mesmo da bondade.  Não tenho a virtude da paciência, nem sei se é virtude. Sou feliz só porque não trabalho num talho.
Não como outros animais. Evito ter contas por pagar. Ando a pé mesmo quando chove. Preciso urgentemente de comprar um guarda-chuva novo.
Fumo, o que não é qualidade. Não prescindo da mentira, o que nem sempre é defeito. Vou ao teatro e respiro. Leio os meus poetas e sufoco. Evito a televisão.
Não sei o que fazer com a minha solidão. Sei fazer chá, o que, convenhamos, não é difícil, e compota de abóbora.
Não me lembro da última vez que ri até às lágrimas.
Nunca fiz uma revolução.
Agora sei que fui feliz em Florença. Lembro-me de várias as vezes que fiquei de coração partido e como diz a canção: o amor só é bom se doer.
Às vezes tenho vontade de abraçar desconhecidos. Garimpo a beleza das coisas, os pormenores insignificantes da vida. Comovo-me com a ferrugem na ferragem da varanda. Não tenho varanda e penso na distância entre o dia de hoje e a minha morte.
E sei que a vida apesar de breve cansa. 


Raquel Serejo Martins

 

Crédito da imagem: Fotografia de Monia Melro

 

 

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