quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Podíamos...

 



Mais do que isto, sim.

Mais do que isto, podemos ficar caladas. Com um olhar parado como aquele dos mortos. Podemos consertar durante longas horas o fumo a sair de um cigarro, a forma de uma chávena, a flor esbatida no tapete, o slogan a desaparecer na parede. 
Podemos evitar as cortinas com os dedos enrugados e ver a chuva cair fortemente no beco, uma criança parada na porta com um colorido papagaio de papel, uma carripana* a sair da praça vazia numa pressa barulhenta. 
Podemos estar ali paradas Ao pé das cortinas – cegas, surdas. Podemos gritar com uma voz bastante falsa, bastante remota "eu amo…" 
Nos braços dominadores de um homem podemos ser uma mulher saudável e bonita. Com um corpo, como uma toalha de mesa de cabedal, com dois peitos grandes e duros, na cama com um bêbedo, um louco, um vadio, podemos manchar a inocência do amor. 
Podemos degradar com astúcia todos os mistérios profundos, podemos continuar a resolver palavras cruzadas, a descobrir alegremente as respostas sem sentido - respostas sem sentido, sim – de cinco ou seis letras. 
Com cabeça inclinada, podemos nos ajoelhar uma vida inteira perante a classe dourada de um túmulo, podemos encontrar deus numa sepultura sem nome, podemos trocar a nossa fé por uma moeda sem valor, podemos apodrecer no canto duma mesquita como um velho recitador de orações de peregrinos. Podemos ser constante como o zero. Nas somas, subtrações, ou multiplicações. 
Podemos pensar nos teus - mesmo nos teus – olhos. Como buracos sem brilho, nuns sapatos velhos. Podemos secar-nos numa bacia, como água. Com vergonha podemos esconder a beleza de um momento juntos no fundo de um baú como uma velha e estranha foto, na moldura vazia de um dia podemos mostrar a imagem duma execução, duma crucificação, ou de um martírio, podemos tapar as rachas na parede com uma máscara. 
Podemos lidar com imagens mais ocas do que essas. Podemos ser como bonecas de corda e olhar para o mundo como olhos de vidro e jazer durante anos entre rendas e lantejoulas, o corpo recheado de palha, dentro de uma caixa de feltro, e a cada toque de luxúria gritar sem nenhuma razão "Ah, que feliz sou !"


Forugh Farrokhzad




*carripana - substantivo feminino PORTUGAL

1. veículo velho ou de má qualidade us. para transporte coletivo; machimbombo.
2. automóvel de aspecto frágil.




Imagem via Pinterest





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