sábado, 23 de maio de 2020

A casa dos rododendros




Na minha rua mora uma mulher triste. Lembro-me de que quando a casa foi construída, eu abrandava sempre em frente às obras para me certificar se o gigante de cimento tinha parado de subir, porque aquela construção destoava na estrada antiga onde as moradias de dois pisos ladeiam harmoniosamente as beiradas do caminho. A casa da mulher triste tem três pisos e uma cave com duas janelas espreitando rentes ao chão, como olhos maléficos. Sempre a achei horrenda e quando ficou pronta, a família veio habitá-la e o mais belo jardim da freguesia nasceu finalmente. Era um jardim retangular com um relvado verdíssimo extremosamente aparado pelo dono da casa, aos domingos de manhã, com direito a protestos por causa do barulho infernal da máquina que perturbava o descanso dos vizinhos.

Quando começamos a conversar, a mulher triste que mora na minha rua tinha os olhos brilhantes e era conversadora... Cruzávamo-nos duas vezes por dia, de manhã bem cedo e à noite, depois do jantar, quando ela vinha passear o cão que, por saber-se em segurança, gostava de atiçar os meus, ladrando furiosamente do outro lado da estrada. E enquanto eu abria os portões, ela conversava comigo, banalidades quase sempre, e eu gabava-lhe o jardim que era a menina dos seus olhos. Singelamente verde e despojado, lembrava-me uma quina de copas com cinco magníficos rododendros imponentes, explodindo em cor, manchas carmesins num jogo de cores maravilhoso... Não sei muito bem quando foi que a mulher que mora na minha rua encheu os olhos de tristeza... Um dia vi-a sozinha, em frente à minha casa e perguntei-lhe pelo cão. Talvez tenha sido nesse momento, em que os olhos dela se demoraram nos meus, que percebi... Hoje sabe-se que a mulher dos olhos tristes vive sozinha no casarão feio a que chamamos a casa dos rododendros. O marido deixou-a há tempos, os filhos partiram para longe, casado um, a fazer Erasmus o outro, emigrado o mais novo. O cão morreu com uma infecção estranha que o veterinário nunca soube explicar... Só resta ela. Num grito de revolta, no outono passado decepou os rododendros, arrancou a relva e cimentou o jardim com uma tijoleira aos quadrados pretos e brancos, porque não queria nada em casa que lhe lembrasse "o falecido". Entendo o gesto dela mas fazem-me falta os rododendros rubros que eu não consigo fazer vingar no meu jardim... Ano após ano, todos os que planto morrem inexplicavelmente...

A mulher triste que mora na minha rua continua a sair de casa, duas vezes por dia, para "respirar"... Os meus cães gostam dela, lambem-lhe mansamente as mãos através das grades quando ela pára para lhes fazer festas com lágrimas nos olhos. Já não lhe ladram... Também eles sabem, estou certa, que naqueles gestos embrulhados em tanta solidão, naqueles olhos vermelhos de tantas lágrimas, se espelham, para sempre, os rubros rododendros da saudade.

Ana Mateus




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