quarta-feira, 27 de maio de 2020

O brilho da memoria



Lembro-me que foi durante um almoço de domingo. Estavam os avós conosco e era verão, quase o dia dos meus anos. Da cabeceira da mesa, o avô sorrindo perguntou-me o que gostaria de receber no meu aniversário... Eu engoli em seco, o coração batendo muito, parecendo querer voar para fora do peito, as mãos tremendo em pouso incerto, e lá sussurrei: 
- Uns patins. 
Primeiro fez-se silêncio, depois todos riram muito da ideia disparatada. A mamãe dizia que nunca, nunquinha, era o que faltava, partir uma perna, os dentes, quem sabe a cabeça, esmurrar os joelhos, eu sei lá... Absolutamente fora de questão! E a avó acrescentava ainda que era um presente muito impróprio para uma menina... Os vestidos tão lindos, todos rasgados, as tranças desfeitas, a neta descabelada...! Que não, e nem se falava mais nisso! 
Com uns olhos enormes rasos de lágrimas, espreitei disfarçadamente o avô, o único que tinha ficado em silêncio, e lembro-me daquela tristeza, numa luz fugitiva, que lhe atravessou o rosto, lhe ficou a pairar no sorriso bondoso... Olhamos um para o outro e encontramos a mesma solidão, reconhecemo-nos na decepção... O assunto morreu ali e não se falou mais nisso.

Nos dias que antecederam o meu aniversário eu andava triste. Não percebia por que razão me tinham perguntado que presente queria, se era para depois me deceparem as ilusões de rajada, num golpe só... E continuei a fugir para o jardim em frente da casa da avó, sentava-me num banco e ficava a olhar os miúdos a andar de patins, fascinada, mergulhada num poço de tristeza que, sem saber muito bem porquê, era fundo e escuro...

O dia do meu aniversário chegou. Os presentes chegaram e eu desembrulhei-os sem emoção, sorri muito e agradeci... Cantaram-me os parabéns. Apaguei as velas. Depois ajudei a levantar a mesa, a arrumar a cozinha e a preparar os lanches para levar para a praia. Já tinha vestido o fato de banho e estava pronta para sair quando a voz do avô me chamou, alegre, do fundo da casa. Pediu-me que me sentasse na poltrona dele, ajoelhou-se aos meus pés e ficou com o rosto à altura do meu... Beijou-me como só os avós sabem beijar, tirou de trás das costas uma caixa que colocou nos meus joelhos a sorrir e disse-me: 
- Para chegares mais depressa à praia... 
Rasguei o papel de uma vez só, abri a caixa e dei um grito de alegria... Eram os mais lindos patins que jamais vira...! As rodas cromadas brilhavam como se feitas de prata e as correias de pele que prendiam o patim ao pé eram de um vermelho vivo, quase de sangue...! Apertei-os contra o peito a chorar muito, a rir muito, beijei-os e cheirei-os, senti-os meus, inacreditavelmente meus...! Numa excitação enorme, lá ia ouvindo ao fundo, a voz do avô explicar-me que eram um bocadinho grandes "para durar" e que eu tinha de ajustar muito bem as correias ao peito do pé e prometer andar devagarinho e com muito cuidado...

Nesse dia não fui à praia. Passei a tarde no jardim a aprender a andar de patins e era tal e qual como eu tinha imaginado...! Uma sensação de liberdade, o vento no rosto, as tranças a voar atrás de mim, os braços do avô, primeiro segurando-me com firmeza, apenas uma mão, mais tarde, amparando-me as costas...  Sim, muitas vezes esmurrei os joelhos, rasguei vestidos, cheguei a casa descabelada e com as mãos em sangue, suja de terra e de pó... E já então eu era como sou hoje... Não há sangue, dor ou ferida que me assustem, que me derrubem, que me impeçam de lutar ou me afastem daquilo que amo. Como em menina, quando amo perco o instinto de conservação, atiro-me para o voo de asas abertas, rasgo o coração e não sei desistir. 

Ana Mateus



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