quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Nós ainda trocamos chinelos

.

Hoje quero partilhar com vocês a delicadeza deste texto de Rubem Alves...


.
"Abaixo está uma carta deliciosa da Dina. Minha vontade era publicá-la! Uma mulher de 86 anos com a leveza, o humor e a vontade de viver como a Dina merecia voar para envergonhar e ressuscitar os mais jovens! Mas não pude fazê-lo, por razões que vocês compreenderão. Mas agora ela morreu. Ela e suas cartas estão livres, além de quaisquer punições. Enquanto viva ela me autorizou a publicar o que quisesse depois da sua morte.
.
***
.
Rubem, sempre você, fazendo com que eu recorde, relembre o passado...Você escreveu no Correio Popular no seu espaço, sobre o sexo dos idosos, você citou Davi com a jovem bonita para aquecê-lo. E ele, moita. Você se esqueceu de Salomão, que possuía trezentas concubinas no serralho, no Harém, que quer dizer: lugar proibido. E fora elas, ainda tinha as esposas que residiam no palácio. Será que ele podia com tanta mulher? Eram muitas, e ele precisava de homens para cuidá-las; ajudá-las no banho e no vestir. Mas Salomão mandava castrá-los, e daí, os eunucos, que quer dizer: castrados.
.
Então, vamos ao fato, no começo citado. Uma estorinha vivida e presenciada por mim. Era o ano 47. Eu tinha que trabalhar muito para sustentar meus filhos, ajudar, porque o pai deles, não gostava de trabalhar em fábricas, era oleiro, e ganhava pouco. Até quarta-feira, eu lavava roupas para fora. Passava-as a ferro de carvão. O resto da semana ia fazer limpeza nas casas, onde moravam ingleses e alemães. Trabalhava às sextas-feiras para uma inglesa, ela tinha oitenta anos, o marido 82. Ela se chamava Miss Carr e ele Mister Carr. O nome eu nunca perguntei, eram "Miss" e "Mister".
.
Ele ainda trabalhava na cidade, sempre muito bem vestido, estatura média, e ela também. Ele vinha almoçar, naquela pontualidade britânica, meio dia.
.
Ela fazia o almoço. Eu limpava a casa e lavava a roupa, que ela passava sentadinha numa cadeira. Eu arrumava a mesa, guardanapos em argolas de prata e coisas que tais e sempre flores na mesa. Ele chegava, tirava o paletó, e o colarinho sobressalente duro qual papelão. Se lavava e os dois iam para a mesa. Depois eu tirava a mesa, isto é, o que havia em cima, servia o cafezinho, e quando ia levá-lo, ela estava sentada no colo dele, e ele a beijava no rosto e em seus cabelos, cabelos que ela os trazia sempre azulados e ficavam assim agarradinhos como se fossem dois jovens. Eu achava lindo, e me perguntava: Será? Ele ia para o trabalho e ela ficava no portão, ele se voltava e acenava-lhe com a mão, até virar a esquina.
.
E um dia de manhã, eu arrumando o quarto dele, cada um dormia no seu. Aí encontrei dois chinelos, mas um era o dela. Eu lhe disse: Miss, aqui tem um chinelo seu e outro do mister. E ela, com aquela carinha engraçada e de quem fora bonita me disse, no seu português ar revezado:
.
"Nós ainda trocamos chinelos..."
.
Eu arregalei os olhos e sorri, e vi naquela frase tão natural e tão bela, que o amor, entre aqueles que se amam de verdade, nunca morre. Eu fiquei feliz com a felicidade e o amor que irradiava no rosto daquela velhinha simpática.
.
(21-5-2001). Dina.
.
Rubem Alves


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

...