quarta-feira, 30 de janeiro de 2019



Ela chega sempre primeiro. Senta-se à mesma mesa, na mesma cadeira, repete com lentidão os mesmos gestos: despir o casaco, dobrá-lo cuidadosamente, pendurá-lo nas costas da cadeira, arranjar o cabelo com gestos indiferentes, abrir a carteira e tirar óculos e telemóvel... Depois liga-lhe e lê-lhe a ementa. Faz o pedido para os dois. E espera. Tem um olhar triste e envelhecido, a pele baça, as raízes do cabelo a precisar de retoque há muito tempo, o verniz das unhas estalado, em tons de ruína. 

Ele chega dez minutos depois. Apressado, não a beija, não a olha, senta-se em silêncio e destapa a tigela da sopa que ela cobriu amorosamente com um prato para que não arrefecesse. Come com os olhos colados na televisão sem som, responde com monossílabos às perguntas que ela lhe faz. Engole a comida como se cumprisse uma obrigação e no fim, levanta-se e repete sempre a mesma pergunta: Pagas isto? Ela, a meio de uma garfada, confirma - Sim, vai lá à tua vida - e sente-se o estalar da indiferença com que ele lhe vira as costas e sai...

Ela não sabe quem eu sou, eu nunca a esquecerei. Eu era uma adolescente sentada na mesa de um café que já não existe, entre um grupo ruidoso de amigos... Na parte do restaurante, ela era a noiva mais bela que já vi. Tinha os negros cabelos soltos, caindo pelos ombros, enfeitados com flores naturais e um maravilhoso vestido branco bordado a pérolas... A saia era voluptuosa, vaporosa, como se ela caminhasse dentro de uma nuvem... Estava feliz e ria, ria muito... Dançou nos braços do marido e juro que flutuava, os olhos brilhando mais do que as pérolas do vestido... Foi a primeira noiva que vi tão de perto e desejei muito poder vir a ser uma noiva assim tão feliz, assim tão bela...

Quando ele sai, a noiva outrora feliz fica sozinha a terminar vagarosamente a refeição. Enquanto espera pelo café, não tira os olhos dos dedos que, em gestos repetitivos e ritmados, enrolam e desenrolam o guardanapo de papel onde se nota o borrão do batom cor de cereja que faz parecer mais pálido o seu tom de pele.

Eu saio antes dela. Deito-lhe um último olhar discretamente e percebo que se mantém cosida consigo própria, refém da solitária dança dos dedos e parece-me mais do que nunca, uma ilha perdida no meio do mar, uma flor murcha, tombada no vidro estilhaçado dos dias... 

Às terças é mais triste o meu almoço no restaurante de sempre... Não sei bem se por causa da limpidez das minhas memórias, se por culpa da aspereza do presente...  

Ana Mateus


Crédito da imagem: Pinterest


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