domingo, 7 de julho de 2019

Sub-reptício






Sei que não é loucura minha, sei que é só maldade tua. Ficas aí, do teu mundinho pequeno a me espreitar. A me vigiar pelas frestas das tuas janelas, pelos buracos na parede que tua malícia vai abrindo dia após dia. E pensas que assim vais me possuindo. Sinto que teus olhos vão me consumindo, em fatias, em nesgas, em pedaços. Mas eu, a cada dia, mais cresço. A cada dentada tua, a cada bocada, sou um pouco mais eu. Cresço na medida em que pensas que me consomes. E tu, como um rato, te esgueiras sobre as telhas. Fazes malabarismos perigosos só para me ver passar. Não faz mal. Gosto de me exibir. Faço questão de mostrar minha intensidade. É disso que tens inveja. De minha paixão embriagadora, de minha euforia incontrolável. O que tu querias, mesmo, era ter as minhas asas. Essas mesmas asas que me fazem ser capaz de alcançar o inatingível. Mas tu não és capaz de voar como eu. Guardastes tuas asas dentro de um armário escuro e o fechaste com cadeado. Só sabes mesmo viver assim, na espreita. Se escondendo pelos cantos  como um rato, ou rastejando feito um caracol a levar sua pobre, triste e escura casa nas costas, cheia de imperfeições e sujeiras. Não faz mal. E porque sei que me vigias, a cada dia abro mais as minhas asas, na esperança de que te lembres que também podes voar.

Dalva Nascimento


"No ar, no ar
eu sou assim
brilho do farol
do mais amargo fim
simplesmente sol"
 (Biafra)


Credito da imagem: obra de Marc Chagal




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