terça-feira, 24 de março de 2020

A casa (numa quarentena)


 

I
por ficarem muito tempo expostas ao ambiente do lar, as donas de casa acabam sendo tomadas pelo lar. é como numa doença
as cenas domésticas avançam no seu sono do mesmo modo que a febre avança no sangue
assim as donas de casa preveem o futuro. dizem que em breve a rebelião virá
.
começará na cozinha. os talheres permanecerão na gaveta, mas à noite
a certa hora do sono teremos pesadelos envolvendo rostos deformados - tal como quando os vemos refletidos no aço da colher
bocas tortas; narizes enormes, côncavos, convexos
o uivo de uma cadela de rua entrará pela fresta da porta, à soleira
e até a faca que deixarmos na mesa
qualquer prateamento esquecido assim
qualquer lâmina disposta no escuro poderá acender-se, renovando em nossas mãos toda uma disposição arcaica para matar
.
as donas de casa sentem que a rebelião virá
e, quando vier, que estejamos atentos
porque será silenciosa. as taças usadas nas festas de fins de ano seguirão intactas nas cristaleiras, tomadas de pó; mas nossa visão de mundo
ela mudará completamente, assumindo-se de acordo com o modelo de entranhamento da luz
na água
e veremos tudo como fulgor
e teremos medo que a linha tênue que opera a separação entre a claridade e os nossos corpos venha a se romper
(a cegueira será para nós a grande ameaça, maior do que foram as guerras, a peste, a fome)
.
mesmo que tenhamos novos planos
mesmo que surjam novos instrumentos de dominação da vida da casa
mesmo que batizemos as coisas do lar com outros nomes
e que falemos esses nomes numa língua de anjos
as donas de casa sabem. a rebelião virá

mar becker
em: compõe com outros dois textos o caderno "breve ontologia doméstica", do livro "a mulher submersa", que sai pela ed. urutau
a série segue sendo escrita e ampliada, segue em trabalho




Crédito da imagem: ailton volpato




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