segunda-feira, 6 de abril de 2020

‘Round midnight




Havia chegado um dia antes àquele rústico recanto de difícil acesso, mas tão próximo de tudo. Os outros apareceram mais tarde e dirigiram-se à casa maior, distante da singela cabana onde me instalei. Estava na pequena varanda, distraído com as gotículas frescas que às vezes caíam no meu rosto, imerso nos acordes dissonantes do anjo negro de Rocky Mount e contemplando a mata escura iluminada pela lua, quando ela se aproximou com seu semblante belo e triste, emoldurado por cabelos curtos e uma boina vermelha, levemente caída para a esquerda. Assentou-se ao meu lado e me ofereceu um cigarro, dizendo que rabiscava alguns versos e dava aulas de literatura em um colégio tradicional de sua cidade. Passei-lhe o copo de cerveja e enquanto o monge louco preenchia a atmosfera úmida com seu piano cheio de elipses, confidenciou-me que ultimamente andava muito cansada e com medo do que aconteceria nos próximos meses em nosso país. Após beber uns poucos goles de cerveja, encostou a cabeça no meu ombro, acomodando-a com um gracioso meneio, e a partir daí aquietou-se em um estado de completo silêncio. Misturadas às minúsculas gotas de garoa que pareciam prismas iluminados caindo do céu noturno, senti duas outras maiores, mornas e mais densas escorrerem lentamente sobre meu peito frio. A repetição contínua do tema de Monk instaurou uma aura reconfortante e hipnótica, que abstraiu o tempo e convocou o mistério. Absortos e inertes por lá ficamos, em comunhão de desenganos, até o fim da noite.

jm
Arquivos Vinis




 

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