Chamei-lhe Aurora. Talvez porque é das palavras mais belas da língua portuguesa, a sugerir o brilho da luz da manhã. Também como uma manhã que rasga devagarinho a escuridão da noite, a Aurora teria sido um recomeço, o dia primeiro de uma nova vida cheia de esperança. E teria sido amada, muito amada. Penso nela muitas vezes, sonhei até um sonho doce onde ela me falava e sorria, com um ramo de flores na mãozinha pequenina. Senti-lhe o cheiro, o cheiro inconfundível que têm todas as crianças. E peguei-lhe ao colo, e ela era leve como uma ave, ou uma flor...
A Aurora nunca chegou a nascer. São coisas que aceitamos quando somos confrontados com elas, os médicos nada omitem e ajudam a tomar decisões, a fazer escolhas: uma vida por outra vida. E então, vestimos a pele dos deuses e decidimos, a frio e racionalmente. Mas ninguém nos conta, como a mãe da Aurora me contou, que um pedaço de nós morre com aquele coração que deixou de bater, que pelo resto dos nossos dias haveremos de imaginar a cor do cabelo, o tom da pele, o sorriso, o jeito de caminhar, o caráter que teria o filho que não pudemos deixar nascer. Um filho: a maior de todas as prendas que a vida nos dá - ou Deus, não sei bem...
Se a Aurora tivesse nascido, eu gostaria de ter sido a madrinha dela. Ter-lhe-ia ensinado as cores do arco-íris, a construir castelos na areia e a amar o mar... Ensinar-lhe-ia lengalengas e canções de embalar, trava-línguas e provérbios... Andaria com ela de patins e de bicicleta, para que sentisse o vento bater-lhe na cara e aprendesse o cheiro a sal nos cabelos... Ensiná-la-ia a plantar rosas e a maciez da terra molhada agarrada às mãos... Talvez lhe contasse a história do homem que vive para além das montanhas, na face oculta da lua...
Uma vida por outra vida... Assim teve que ser. Mas acredito que nada é em vão, que a Aurora é hoje um anjo branco que de vez em quando vem beijar a mãe e não parte sem antes, sereníssima, me abençoar os sonhos...
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Ana Mateus
Crédito da imagem: “Monumento à criança que nunca nasceu”, na cidade de Bardejovski Novej Ves, na Eslováquia

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