quinta-feira, 2 de julho de 2020

Dos meus livros


"Contos do Gin-Tonic", 1973 
de Mário-Henrique Leiria (1923-1980) 

 

O Menino e o Caixote
 
- Não pode ser - disse o senhor Sousa ao filho, o Ernestinho de oito anos.
- Mas, papá, eu vejo nos filmes. Todos têm - afirmou a criança, à procura de uma salvação para aquilo que lhe parecia um desejo certo.
- Onde é que já se viu um leão em casa? Só nessas fitas idiotas. E, além disso, o menino não vê que não há espaço? Para a semana arranjo-lhe um gato bonito, daqueles que bebem leitinho e fazem miau.
O Ernestinho desistiu de convencer o pai. Para quê? Era um homem com bigode, sempre a explicar o que não era preciso. Nem sequer percebia de leões.
Sentou-se no chão a pensar. Com certeza que devia haver um leão, ali em casa! Não era a vassoura atrás da porta, nem a cadeira larga da mãe dormir aos domingos, nem sequer o embrulho do lixo à espera de ser deitado fora. Foi investigar, toda a gente sabe que os leões estão onde menos se espera.
Na cozinha, lá ao fundo, estava o caixote vazio que trouxera as compras da Cooperativa. O Ernestinho pousou-lhe a mão, acariciou-o com ternura e um certo receio. O caixote rugiu e sacudiu a areia amarela e antiga que lhe aquecia a juba. O menino puxou-o ao de leve, como quem ensina e acompanha, e o caixote seguiu-o, pisando firme.
O Ernestinho sentou-se no chão da sala. Entre o sofá e a mesinha da televisão o caixote ficava mesmo bem, confortável, como na caverna onde nascera e dera o primeiro rugido.
- Agora vamos caçar, Baluba - explicou o Ernestinho ao caixote.
- Que faz o meninho aí com esse caixote? - perguntou severamente o senhor Sousa, abrindo a porta, de sobrolho franzido.
O menino olhou para o pai, assustado, e depois para o seu amigo Baluba.
- Mata o velho, Baluba! - gritou, num desespero.
O leão saltou veloz e, com uma única dentada eficaz, arrancou a cabeça do senhor Sousa.






   

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