quinta-feira, 28 de maio de 2020

Sobre o não dito

 

Três lindas meninas bordavam ao lado da mãe no distante socavão de onde se avista a cidade de Faria Lemos. Lugar seco, de pedregulhos, muitos besouros no verão, revoada de tanajuras em novembro, fortes trovões. A mais velha muxoxeava:
- Quero ser feliz, minha mãe!

A mãe dizia:
- Borde, minha filha.
A moça prendada borda.

Acontece que os amores não vinham, ninguém passava por ali, e, aos domingos, na missa, o pai ficava de olho. As meninas já sabiam fazer costuras variadas, tricô, crochê, ponto cruz, ponto haste, nó francês e ponto cheio. E arroz doce. E pudim de laranja. E caldas, e licores. Arranjos com hortênsias e samambaias. Polvilho.

Usavam um leve toque de ruge, mesmo que fosse para espiar pela janela, nunca se sabe. E os janeiros se iam, ia fevereiro, e nada.

- Deixe-me namorar, meu pai!
Pediu a moça mais velha.
E o pai não deixava, por um motivo ou outro, que era muito cedo. E as filhas aprendendo virtudes.

Um dia, a mais velha apareceu grávida: mas como, não saía de perto da mãe, sempre sob os cuidados do pai? Arrumaram um casamento rápido com um empregado do sítio, rapazinho tímido, que soía ser apaixonado na moça. Envergonhados, nem mais iam à missa. Mas não parou por aí.

Tempos depois, a segunda apareceu grávida e a terceira também. E, da mesma forma, casamentos foram feitos à pressa, com rapazinhos sem futuros, socavados nos ermos. Os filhos cresceram, todos muito parecidos com o avô, impressionante semelhança, sussurravam os vizinhos. Quando o avô morreu, as três mulheres obrigaram os filhos a beijá-lo.

Decidiram vender o sítio e dividir os resultados entre as três filhas. A mãe, já idosa, moraria com a mais velha. Feito o negócio, com a mudança nas charretes, a mais velha ainda olhou a antiga casa colonial de pau-a-pique, de imensas janelas azuis, e gritou, sabe-se lá para quem, em alta voz, que penetrou profundo nos formigueiros e cupinzeiros, que seguiu pirambeira abaixo, que pairou sobre a cidade de Faria Lemos, ao pé do morro:
- Dane-se, maldito!

Nenhuma irmã respondeu, os cavalos tocaram passo. A velha mãe sequer esboçou um ar triste, ou alegre, apenas sacudiu os ombros pelo meneio do cavalo.

Contaram-me hoje esta história, achei que daria um enredo curioso sobre o silêncio, o não dito, o que não se revela. Tentei dizer, não dizendo. Mas todo silêncio reverbera, ainda hoje, nas barrancas da velha casa.

José Antonio Abreu de Oliveira



Imagem: Fazenda Pedra Branca, acesso pela Estrada Velha de Indaiatuba, Campinas SP, 19/08/2018. (casa de colono).







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