domingo, 23 de janeiro de 2022

Dos meus livros

 

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... vê primeiro a mancha vermelha em movimento, surpreendendo-o na dobra da esquina, luz, lufada de ar que alivia a garganta engasgada pelo cinzento, só depois vê a mulher dentro do vestido encarnado, a metade de um sorriso aparecendo devagarinho na cara dela, a mão acenando repetidamente "vem, vem", ele vai, "vem"...

... Os olhos da mulher, súplica e esperança, o meio sorriso, ferida aberta no meio da cara...

... [ela] avança para o homem que a mira com olhos de espanto e pena, que não se esquiva, não se defende, estende os braços, oferece o peito aberto, há quanto, quanto tempo ela não sabe o que é um peito onde encostar-se!, apoiar-se neste peito duro e brando é como chegar, enfim, a algum lugar de seu, é como voltar ao início onde ainda nada se perdeu ... onde ela ainda está inteira e já não treme, nem tem raiva...

... sente dó, tanta dó desta mulher!, faz lembrar aquela guará, vermelha, de pernas longas e finas como caniços, que ele uma vez encontrou enredada nos galhos de um espinheiro, as penas ainda mais rubras, tintas de sangue, que ele soltou e quisera curar mas que, descrente, arisca, fugiu dele para, quem sabe?, sangrar até morrer, sozinha, desamparada naquele ermo tão longe dos mangues de onde viera; mas esta não, esta vem cair no seu peito, não foge,  ele não deixa, faz dos braços cerca em volta dela. embala, devagarinho, e começa a contar:

Uma vez eu vinha só, caminhando por um ermo, somente eu e Deus, naquele lugar tão longe, um descampado sem fim, de capoeira seca e rala, vinha buscando lugar que fosse de gente viva onde houvesse descansar e então, naquele silêncio, ouvi um gemido triste de cortar o coração e vi uma ave guará enredada num espinheiro, se debatendo, coitada...

 ...  ele nem sabe porque conta ... só conta, conta, devagar, alongando as palavras, desenhando os detalhes e sentindo tornar-se mais leve o tremor daquela ave guará que tem nos braços, interrompendo-se em soluços, o peito dele umedecendo-se.

Conta, homem, conta mais, é cedo para ir-se embora, nem o dia clareou, enquanto durar a noite conta, conta para eu sonhar. Ela pede, logo ela, que por não querer pedir, nunca, favor a ninguém, nas emboladas da vida chegou aqui, nada tem, a bem dizer nem tem mais vida. Conta de onde você veio, conta, conta...


Maria Valéria Rezende

 

O livro é O Vôo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende


 



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