Deus nos dê boa noite. Boa noite nos dê Deus. Era este o ritual de todos os dias quando o sol se punha e Manês* acendia o candeeiro a petróleo. Tínhamos que estar atentos para não falharmos a resposta.
Manês, mesmo com relógio, regia-se pela luz solar. Levantava-se ainda a estrela d'alva se fazia ver. Então, era aquele cafezinho acabado de torrar, moer e parar*, com cachupinha* guisada, ovo estrelado, carne assada. O almoço era na altura em que a sombra da casa chegava mais ou menos à porta e o jantar, esse, era servido ainda o Sol ia alto.
Deitava-se cedo e, a partir daí, Manês era dona absoluta da sua chave. Já adultos, quando íamos passar algum tempo com ela, lembro-me que a hora de ir para a cama continuava a ser sagrada. Se pretendêssemos dar uma voltinha ao luar e saborear o fresquinho da noite, Manês não saía da porta enquanto não chegássemos.
Depois de todos acomodados, ela tinha então o seu momento de meditação: ela, o seu rosário e o seu canhóte*. Este era a sua pequena fraqueza (não lhe conheci outra) e quase que um segredo, pois só fumava quando já todos estavam a dormir e uma única vez. Mas, quanto ao rosário desfiava-o durante o dia sempre que os seus afazeres o permitiam.
Contudo, Manês ia à Igreja muito raramente. Não sei se por a capela distar um bocado de casa ou porque o relacionamento com o seu Deus fosse harmonioso, tornando-se dispensável a intervenção de terceiros.
Ela sabia que nunca lhe faltaria o pão nosso de cada dia. Deus dará, dizia. No entanto, Manês fazia por isso, seguindo a asserção bíblica: Põe a mão e eu te ajudarei. Assim, no quintal tinha a porca que lhe dava alguns leitões por ano, sendo um para a vizinha que lhe cedia o varrasco*, outros para vender e um para engorda e abate. No dia da matança todos na vizinhança tinham a sua parte, e o resto da carne era salgada e o toucinho transformado em banha.
Tinha a cabrinha que não faltava com o leite (espumoso e quentinho) e as galinhas com os seus ovos e frangos para canja ou guisado. Todos os dias fazia sair os seus funguins*, deliciosos, e que os vizinhos compravam num abrir e fechar de olhos.
Quando a tia Joana lhe enviava o caixote com gêneros alimentícios e variadíssimos outros artigos, Manês nunca esquecia os vizinhos, e todos compartilhavam da bonança (em especial a D. Sara, que era quem lhe punha a correspondência em dia, quando os olhos começaram a não ajudar). E daquilo que reservava para si, o que era suscetível de ser transformado, era-o. Por exemplo da farinha de trigo fazia maravilhosas filhós* que as pessoas procuravam, indo-lhe bater à porta.
Também os pobres que lhe batiam à porta aos sábados, como era hábito da terra, tinham sempre o seu quinhão do muito ou do pouco que houvesse.
Para ela a hospitalidade era um ponto de honra. A qualquer hora do dia ou da noite que chegasse uma visita, Manês não era apanhada desprevenida. Dum pequeno armário embutido na parede, extraía arroz, açúcar, café, enfim, tudo para uma refeição condigna, ali guardado para estas eventualidades. A cama era logo feita com lençóis alvíssimos que saíam da grande mala guardada no quarto destinado a visitas.
Lembro-me que o quarto foi mandado construir por ela, com as suas economias, pois quando comprou a casinha esta só tinha uma divisão. Depois Manês mandou fazer um quarto à direita e outro à esquerda, um quintal, uma cozinhola e uma casa de banho.
A seguir, mandou murar uns quantos metros quadrados de terreno, considerado baldio, e aí no meio das pedras, Manês fazia brotar lindos pés de feijão, couves e outras verduras, regadas à caneca, com a água que ela mandava buscar ao chafariz.
Sempre a conheci assim, na sua labuta donde transparecia uma humanidade infinita. Penso que nós nunca paramos para nos interrogarmos donde lhe vinha toda aquela força e como ela conseguira superar todas as partidas que a vida lhe pregara. Nem tão pouco era assunto em que ela tocasse. E também nunca houve na família uma conversa formal sobre aquela época que já parecia tão remota.
O fato é que, da mesma forma como ela organizava o seu pequeno mundo com sabedoria e dignidade, também organizara e administrara um mundo imenso, os bens dos filhos. Chegados à maioridade deu-se a partilha. Por contingências da vida, Dona Inês ficara sem nada de seu.
Quando Manês partiu era já nonagenária. Viveu muito tempo, dir-se-á. Mas não o suficiente, diríamos nós, os seus netos, espalhados pelos quatro cantos do mundo, cidadãos do mundo. Foi um tempo inesquecível, em que pudemos nos beneficiar do seu exemplo, pela sua integridade, pela sua maneira de estar na vida.
Quanto a mim, devo dizer, recordo com saudades a firmeza bondosa dos seus olhos onde se espelhava o céu e, sempre que sinto a vida pesar e quero desistir, é no seu exemplo que procuro as forças necessárias para continuar.
Dufinha Santos
Manês - Mãe Inês;
Parar o café - Fazer o café;
Cachupa - Prato típico de Cabo Vede, elaborado com carne ou peixe, feijão, milho, batata e banana
Canhóte - cachimbo
Varrasco - Carrasco, algoz, executor ou verdugo são nomes dados ao funcionário diretamente encarregado da execução de uma sentença de pena de morte. No texto, refere-se àquele que mata o porco.
Funguins - bolinhos de farinha de milho, banana, açúcar, ovos.
Filhós - especialidade gastronômica portuguesa, muito comum nas regiões do interior e Norte por altura do Natal. É feita com farinha e ovos, por vezes também com abóbora e raspa de laranja, frita em azeite, ou outros óleos vegetais. Muitas vezes é polvilhada de açúcar e canela

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