É menina – sentenciou o médico. Dentro do grito que sua avó deu, a surpresa se misturava com a preocupação. Menina como eu, pensei, sem saber se era alegria ou tristeza o que escorria dos meus olhos.
Hoje eu acho que era medo, filha.
A gente quando engravida não pensa em muita coisa. Você quer um bebê e é bem fácil fazer um. Quando você crescer eu explico tudo, prometo. Aí vem o resultado positivo e a gente quase que quer pregar na testa para mostrar para todo mundo que tem bebê ali dentro daquela barriga molinha de quem comeu muito pão de manhã.
Logo a barriga cresce e todo mundo quer passar a mão, quer saber, quer perguntar. É para quando? É menina? Já tem nome? É menino? Vai ser parto normal? Qual seu médico? Você já agendou o hospital?
Acho que foi pelo excesso de pergunta que eu acabei descobrindo que eu não sabia de nada. Que ter um bebê era muito mais difícil do que parecia, não era só ficar parada esperando amadurecer, tinha um monte de coisa para decidir.
Tinha que saber o sexo e tinha que escolher o nome, o tema do quarto, a cor da parede. Tinha que encomendar o kit do berço – e eu achando que ter um berço já era grande coisa. Eu também devia procurar uma doula, fazer ginástica de grávida, aula de parto. Escolher o hospital e escrever um plano. Depois pensar nos exames, não pode ganhar muito peso e nem tomar coca cola. Cerveja, então, nem pensar – mas isso eu já sabia, embora tenha ouvido dizer que se for só um copinho não faz mal.
Ah sim, e eu tinha que dormir muito. Isso todo mundo me falava. Porque depois, já viu, nunca mais vai dormir. Até que isso era verdade, que até hoje eu não durmo direito. Se bem que eu acho que nunca fui muito boa de dormir. Nem de acordar.
Mas foi no dia que o médico me contou o seu sexo que o meu mundo começou a desmontar. Porque eu não sabia o que eu podia providenciar para te preparar para ser mulher aqui junto comigo. Eu não sabia como te contar das coisas que passei e como te ensinar o que eu nunca aprendi. E por isso eu chorei, e ainda choro.
A primeira coisa que eu escolhi foi o seu nome. Vai se chamar Helena, como a minha avó. E sem querer te marquei com tudo o que você vai carregar para o resto da vida. Minha herança, o que eu tenho para deixar para você, é só isso mesmo, esse ser mulher. Mulher como eu, como a sua avó e sua bisavó.
Sua bisa Helena corria pela casa o dia inteiro, atendendo uns e outros, criou seis filhos, mais um bocado de neto e nunca – nunca – tinha um sorriso no rosto. Vó Lena dos braços fortes, carregava dois meninos no colo ao mesmo tempo. Matava galinha, puxava bala de coco com uma mão só. Não gritava com a gente, porque não precisava. Só de olhar a gente obedecia na mesma hora.
O sangue que te corre as veias tem de Vó Lena, que virou sua bisa quando já tinha morrido. Tem também da minha mãe, sua avó Célia, que mora com a gente até hoje e é o seu xodó. Não sei se ela mora com a gente ou se a gente é que mora com ela.
Mãe Célia que saiu cedo de casa para estudar e virou professora. Criou três filhos sozinha, botou para fora o marido alcoólatra, que ficou morando na casa da vizinha, amiga dela. Sua avó Célia, que cuida do seu avô até hoje, depois que a vizinha cansou dele e sumiu, largando ele e os cachorros para trás.
Seu sangue tem de mim também, pequena, que estou aqui tentando descobrir como fazer para ser o que nunca achei que teria que ser: exemplo para alguém. Me dói saber que você carrega em si tanto de uma mãe dorminhoca que não é forte como sua bisa nem determinada como sua avó. Uma mãe que não soube dizer não para o seu pai e acabou engravidando nova demais, sem nem terminar a faculdade. Que esqueceu de dar comida aos peixinhos e deixou eles morrerem. Uma mãe que não preparou nada e que nem sabe de tudo o que devia ter sido para poder ser mãe.
O que me resta é te desejar sorte. Que você tenha em você a bisa que não conheceu e saiba que ela era brava, mas cantava de noite para os filhos dormirem. Que se lembre da avó, que não parava em casa, mas que depois nos abriu sua casa quando a gente mais precisou. E de sua mãe, que não sabe ser mãe, mas que teve a coragem de te assumir e de te querer, quando seu pai decidiu que não dava para ele.
É menina, disse o médico. E meu chão se abriu.
É menina e tem tanto para aprender. Tanto para escolher. Tanto para receber.
É menina. Como eu.
Carla Guerson

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