segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Abrindo espaços

.
.
Sempre me encantava , quando criança, ver embarcações desaparecerem na linha do horizonte, até onde meus olhos podiam enxergar.
.
Acreditava que elas sumiam para sempre, via como criança, com beleza e imaginação e pensava que ali era o fim...
.
E ficava lá, à deriva do mundo, olhando o diminuir dos barcos.
.
O tempo passou, eu cresci e entendi que o diminuir não era de verdade, que no ponto onde eles sumiam, não sumiam de fato e tudo que eu via era pelo olhar bonito e puro de quem ainda não aprendera sobre certos limites.
.
O tempo passou, eu cresci e descobri que eles, os barcos, diminuem para nossos olhos à medida em que crescem para outros olhos; que somem para nós, para surgir para alguém que, em algum lugar, divide conosco o ato mágico de velar o mar.
.
Tudo isso veio à memória, porque estava lendo Clarice Pínkola, e ela fala no ciclo da vida-morte-vida, que morremos e nascemos muitas vezes, às vezes num mesmo dia, numa mesma semana, num mesmo mês, na mesma vida. Fala que morte não é prenúncio do fim, mas de um início, e mais, diz que é nossa a tarefa de matar, matar algo para permitir que uma nova vida venha.
.
Matar dentro de nós. Questão de espaço. Faz sentido que não comportamos tudo.
.
Não há espaço para tanto sentir. E quando insistimos em manter vivos certos sentimentos através de respiração artificial, não há espaço para nascer nada de novo. Então temos que abrir o baú e matar dentro de nós mágoas, dores-velhas ou novas, moções empoeiradas, vícios humanos, escolhas erradas, ferimentos mantidos sangrando, decepções, conceitos obliterados, amores infelizes, imagens amareladas, relacionamentos passados, tristezas, amarguras, pessoas... E por aí vai... A lista é individual, cada um tem a sua.
.
O que é comum a todos é a responsabilidade de, interiormente, exterminar, dar fim ao que é ruim para que algo novo e bom nasça. É fácil? Não mesmo. A aparência de qualquer morte é sempre feia e matar internamente não é simples impulso, é decisão pensada, medida e avaliada.
.
É fato que temos sempre a opção de continuar achando que os barcos do sentir seguem seu curso e, chegada a hora, ultrapassando a linha do horizonte do coração, morrerão por si só. Mas, na verdade isso significa manter no nosso âmago tudo - até o lixo - que amealhamos, em arquivos abarrotados que crescem e crescem embotando a vida,e nos enganarmos dizendo: são arquivos mortos.
.
É isso ou então encaramos a megera e aprendemos a matar. O que deverá morrer em mim hoje? Essa é a pergunta que ela sugere para começar. E eu , com a experiência de observadora criança, humildemente acrescento: não basta escolher dentro de nós o que vai morrer, e em seguida matar. É preciso enterrar. Porque às vezes o que nos fez mal já está pra lá de morto, mas mantemos mumificado dentro de nós, para usarmos como referencial, para não esquecermos do que sofremos e não cairmos de novo nas mesmas armadilhas. Outro engano. Nada é igual nunca e dores embalsamadas não servem como exemplo, nem protegem, só paralisam. Não há fórmula. Não há bulas. A única maneira de viver é permitir que a vida nasça e morra e de novo nasça, tantas vezes quanto forem necessárias...
.
Portanto, para abrir os espaços é necessário nos fazermos perguntas. E uma vez identificado o que não é bom e não nos serve mais, devemos dar-lhe a morte.
.
Em seguida enterremos nosso morto, choremos um pouco, e, cumprido ritual, vistamo-nos com esmero para esperar. Algo bom estará nascendo. E agora? Agora o mundo real chama, a vida grita, o tempo urge e eu buscando palavras para encerrar a crônica, relembro que o fim é uma questão relativa, mas necessária.
.
E olhando da janela para o horizonte que parece ser o fim, mas é também o princípio, finalizo para poder (re)começar.
.
Maine Virginia Carvalho

Um comentário:

SAM disse...

Considere-se participante ativa, Dalva!
Obrigado pelo interesse!

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

...