terça-feira, 29 de outubro de 2024

Pequenos prazeres

 



Madalena cresceu tendo tudo entre as mãos. Andou nos melhores colégios, com os brinquedos mais caros, cavalos árabes, festas de um turbilhão de cores, empregadas para cada momento, as pérolas e as amigas de conveniência.

Agora, mulher elegante, bonita, bem cuidada e interessante, passa os dias entre o ginásio, as excursões à Avenida da Liberdade com as amigas, os palmiers da Pastelaria Restelo às cinco, os vestidos de marca, os sapatos JimmyChoo, o pecado dos croissants da Bénard nos dias de chuva.

Sente-se bem e esta vida traz-lhe um sorriso aberto a todo o instante. Apesar de às vezes lhe parecer que alguma coisa se perdeu.

No almoço de sushi na Bica, a amiga de sempre sentencia com uma gargalhada cantada: "Isto é que é viver bem.. A vida é feita destes pequenos prazeres!"

E Madalena sorri um sorriso triste, se é que isso existe.

Lembrou-se do avô. O avô que é hoje um resto do que foi, uma ínfima parte do que era.

O verão a sério só chegava com as duas semanas que passava com os avós paternos na Costa. O avô sempre cheio de força e energia, que a ensinava a fazer torres infinitas com a areia molhada, levava-a até às ondas mais rebeldes, ensinava-a a comer conquilhas* cruas que encontravam arrastando os pés na maré-vazia. Apanhavam uma dúzia, ia tudo para o balde azul e depois sentavam-se a comê-las. Sushi à antiga.. "Sabe mesmo a mar... A isto eu chamo pequenos prazeres" e ria, coisa que era rara nele. E Madalena sorria sem perceber, mas feliz por estar ali.

Tem saudades do avô, do verão na Costa, das marés-vazias. Muitas, imensas. Se calhar devia dizer-lhe isso na próxima visita. Ainda que ele nem perceba, perdido que está no espaço e no tempo, perdido de si e dos seus. Tem saudades do seu sorriso à beira-mar.

Acaba de decidir: na próxima vez leva-lhe um balde azul cheio, carregadinho de pequenos prazeres. Pode ser que o faça lembrar quem é a menina-mulher que ali está à sua frente. E talvez até sorrir.

historiasdenos.blogspot.com


*conquilhas:
designação comum, extensiva a diferentes espécies de moluscos bivalves do género Donax, da família dos Donacídeos, comestíveis e bastante comuns nas costas meridionais portuguesas, sobretudo em zonas de rebentação marítima, enterrados no areal a pouca profundidade



 

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