quarta-feira, 1 de março de 2023

De madrugadas e tristezas

 


 

Às vezes uma chuva molhada é uma coisa boa para escorregar momentos em direção a mim. Quando uma chuva molhada cai sobre o mundo redondo, as coisas da vida e a vida das coisas encontram-se num quintal vasto. Foi sob uma chuva molhada em canduras que encontrei as barbas do meu pai num poema e o sorriso da minha mãe noutro. Foi nas entrelinhas dum poema ensopado que encontrei, várias vezes, a autorização interna pra falar a palavra amor (vou tentar não apagar isto: eu tenho certo receio da palavra amor, espero só que ela não me tenha receios também; seria triste).

Foi com as mãos sujas de restos de amor que estiquei uma madrugada. quando digo a palavra madrugada também sinto um esticão no coração. Se agora abuso muito das madrugadas é porque cada uma delas tem restos de amor que eu sempre vou perdendo. Qualquer dia acumulo esses restos todos e faço uma construção de amor (talvez chame uma mulher pra se encostar ao outro lado dessa construção). A palavra amor pode ser um labirinto com mais de catorze lados avessos. Depois de esticar uma madrugada encosto a madrugada na minha pele e espero. A pele gosta de ser esculpida de novo muitas vezes na vida.

Se puser um «v» na palavra esticar, poderei estivar uma madrugada. Aí elevo-me a estivador de madrugadas e posso pensar num caixote com luar, um caixote com geada, caixotes pesados de estrelas, caixotes de nuvens carregadas de pingos, um caixote hermético com lágrimas, uma caixinha de costura com restos concretos de amor.

(...) há qualquer coisa de sapiência na palavra tristeza. E algumas tristezas não são de espanar – um dia posso descobrir que elas me fazem falta e ter que ir buscá-las na lixeira da Catinton*. Vou encher-me de silêncios e imitar as pedras. Adormecer entre as pedras pode ser que me contagie delas. Depois de conseguir ser pedra vou exercitar o sorriso dessa pedra que eu for. Com esse sorriso vou iniciar uma construção... Uma construção pode bem ser o lado avesso de uma certa tristezura.


Ondjaki, poeta, nasceu em Luanda, em 1977. É membro da União dos Escritores Angolanos e da Associação Protetora do Anonimato dos Gambuzinos. Alguns livros seus foram traduzidos para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco, polaco.

 

 *Catinton é um bairro muito pobre, sem as principais infra-estruturas, com ruas cheias de lixo, na  capital de Angola, Luanda

 

 



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