quinta-feira, 28 de maio de 2020

Preciso escrever-te


 

... tenho sentido a tua ausência nas palavras que não te escrevo. Trabalho, muito, distrações várias, preocupações mil que me afastam de ti. Nas palavras quero dizer. Em pensamento, tu a interromperes-me as manhãs as tardes as noites. As mesmas manhãs tardes noites que não te escrevo. Sinto-te na ausência do que não digo. Preciso de escrever-te.
Repito: preciso de escrever-te.

Paulo Ferreira
in Cartas a Mónica




Imagem da Web 





Um abraço para sempre



Para sempre me ficou esse abraço. Por via desse cingir de corpo minha vida se mudou. Depois desse abraço, trocou-se, no mundo, o fora pelo dentro. Agora, é dentro que tenho pele. Agora, meus olhos se abrem apenas para as funduras da alma. Nesse reverso, a poeira da rua me suja é o coração. Vou perdendo noção de mim, vou desbrilhando. E se eu peço que ele regresse é para sua mão peroleira me descobrir ainda cintilosa por dentro. Todo este tempo me madreperolei, me enfeitei de lembrança. Mas o homem de minha paixão se foi demorando tanto que receio me acontecer como a ostra que vai engrossando tanto a casca que morre dentro de sua própria prisão. Certamente, ele passará por mim e não me reconhecerá.

Mia Couto,
in Na Berma de Nenhuma Estrada


 Imagem via Pinterest



 


Sobre o não dito

 

Três lindas meninas bordavam ao lado da mãe no distante socavão de onde se avista a cidade de Faria Lemos. Lugar seco, de pedregulhos, muitos besouros no verão, revoada de tanajuras em novembro, fortes trovões. A mais velha muxoxeava:
- Quero ser feliz, minha mãe!

A mãe dizia:
- Borde, minha filha.
A moça prendada borda.

Acontece que os amores não vinham, ninguém passava por ali, e, aos domingos, na missa, o pai ficava de olho. As meninas já sabiam fazer costuras variadas, tricô, crochê, ponto cruz, ponto haste, nó francês e ponto cheio. E arroz doce. E pudim de laranja. E caldas, e licores. Arranjos com hortênsias e samambaias. Polvilho.

Usavam um leve toque de ruge, mesmo que fosse para espiar pela janela, nunca se sabe. E os janeiros se iam, ia fevereiro, e nada.

- Deixe-me namorar, meu pai!
Pediu a moça mais velha.
E o pai não deixava, por um motivo ou outro, que era muito cedo. E as filhas aprendendo virtudes.

Um dia, a mais velha apareceu grávida: mas como, não saía de perto da mãe, sempre sob os cuidados do pai? Arrumaram um casamento rápido com um empregado do sítio, rapazinho tímido, que soía ser apaixonado na moça. Envergonhados, nem mais iam à missa. Mas não parou por aí.

Tempos depois, a segunda apareceu grávida e a terceira também. E, da mesma forma, casamentos foram feitos à pressa, com rapazinhos sem futuros, socavados nos ermos. Os filhos cresceram, todos muito parecidos com o avô, impressionante semelhança, sussurravam os vizinhos. Quando o avô morreu, as três mulheres obrigaram os filhos a beijá-lo.

Decidiram vender o sítio e dividir os resultados entre as três filhas. A mãe, já idosa, moraria com a mais velha. Feito o negócio, com a mudança nas charretes, a mais velha ainda olhou a antiga casa colonial de pau-a-pique, de imensas janelas azuis, e gritou, sabe-se lá para quem, em alta voz, que penetrou profundo nos formigueiros e cupinzeiros, que seguiu pirambeira abaixo, que pairou sobre a cidade de Faria Lemos, ao pé do morro:
- Dane-se, maldito!

Nenhuma irmã respondeu, os cavalos tocaram passo. A velha mãe sequer esboçou um ar triste, ou alegre, apenas sacudiu os ombros pelo meneio do cavalo.

Contaram-me hoje esta história, achei que daria um enredo curioso sobre o silêncio, o não dito, o que não se revela. Tentei dizer, não dizendo. Mas todo silêncio reverbera, ainda hoje, nas barrancas da velha casa.

José Antonio Abreu de Oliveira



Imagem: Fazenda Pedra Branca, acesso pela Estrada Velha de Indaiatuba, Campinas SP, 19/08/2018. (casa de colono).







Enquanto respiro a saudade


 

E então escorrego para dentro dos meus olhos fechados... E do lado de dentro dos meus olhos há uma rua ventosa igual a tantas outras ruas cheias de vento e uma casa igual a todas as outras casas da cidade. Dentro dessa casa cheira a mar e ouvem-se as ondas num suave murmúrio ecoando toadas inquietas nas paredes pintadas de azul... Um corpo rasga as sombras e percebo que é o teu, pela maneira como te moves... O rádio antigo, abandonado no varandim amarelecido, deixa escapar do seu pequeno corpo de lata uma música imortal e há uma borboleta com as asas feridas presa entre as vidraças da janela onde o sol morre devagar, numa quietude morna... Lá fora o mundo move-se, impassível, alheio ao que sinto, e enquanto respiro a saudade lentamente, mantenho os olhos fechados, deixo que por uns instantes, num tempo suspenso, a memória te veja melhor.
 
Ana Mateus




Crédito da imagem: "Lady in Vintage Clothing Hiding Behind Old Door", by Jill Battaglia




quarta-feira, 27 de maio de 2020

Como o gato

 

Há dias, sabes, em que gostava de ser como o gato e que  me tocasses sem desejar encontrar qualquer sentimento a não ser o que se exprime num espreguiçar muito lento - um vago agradecimento? - e depois me deixasses deitado no sofá sem que nada pudesses levar da minha alma, pois nem saberias o que dela roubar.

Pedro Paixão
in Assinar a Pele



Crédito da imagem: @daaack46




E quando a tempestade tiver passado

 

E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.

Haruki Murakami



Fotografia: Pixabay/Inmet




Reflexos de brilho, como pó lançado ao ar

 

Durante todas as noites desse verão, as estrelas foram líquidas no céu. Quando eu as olhava, eram pontos líquidos de brilho no céu. Na primeira vez, encontrámo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou três palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caía como se flutuasse: cair através do céu dentro de um sonho.
Naquela noite, fiquei a esperá-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensão. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma única forma noturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao céu claro da noite. E faltou uma batida ao coração.
O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer. Corremos pelo passeio de mãos dadas. A minha mão a envolver a mão fina dela, a força dos seus dedos dentro dos meus. Na noite, os nossos corpos a correrem lado a lado. Quando parámos, as nossas respirações, os nossos rostos admirados um com o outro: olhámo-nos como se nos estivéssemos a ver para sempre. Quando os meus lábios se aproximaram devagar dos lábios dela e nos beijamos, havia reflexos de brilho, como pó lançado ao ar, a caírem pela noite que nos cobria.

José Luís Peixoto
in Cemitério de Pianos




Fotografia de Rodrigo Razquin



O brilho da memoria



Lembro-me que foi durante um almoço de domingo. Estavam os avós conosco e era verão, quase o dia dos meus anos. Da cabeceira da mesa, o avô sorrindo perguntou-me o que gostaria de receber no meu aniversário... Eu engoli em seco, o coração batendo muito, parecendo querer voar para fora do peito, as mãos tremendo em pouso incerto, e lá sussurrei: 
- Uns patins. 
Primeiro fez-se silêncio, depois todos riram muito da ideia disparatada. A mamãe dizia que nunca, nunquinha, era o que faltava, partir uma perna, os dentes, quem sabe a cabeça, esmurrar os joelhos, eu sei lá... Absolutamente fora de questão! E a avó acrescentava ainda que era um presente muito impróprio para uma menina... Os vestidos tão lindos, todos rasgados, as tranças desfeitas, a neta descabelada...! Que não, e nem se falava mais nisso! 
Com uns olhos enormes rasos de lágrimas, espreitei disfarçadamente o avô, o único que tinha ficado em silêncio, e lembro-me daquela tristeza, numa luz fugitiva, que lhe atravessou o rosto, lhe ficou a pairar no sorriso bondoso... Olhamos um para o outro e encontramos a mesma solidão, reconhecemo-nos na decepção... O assunto morreu ali e não se falou mais nisso.

Nos dias que antecederam o meu aniversário eu andava triste. Não percebia por que razão me tinham perguntado que presente queria, se era para depois me deceparem as ilusões de rajada, num golpe só... E continuei a fugir para o jardim em frente da casa da avó, sentava-me num banco e ficava a olhar os miúdos a andar de patins, fascinada, mergulhada num poço de tristeza que, sem saber muito bem porquê, era fundo e escuro...

O dia do meu aniversário chegou. Os presentes chegaram e eu desembrulhei-os sem emoção, sorri muito e agradeci... Cantaram-me os parabéns. Apaguei as velas. Depois ajudei a levantar a mesa, a arrumar a cozinha e a preparar os lanches para levar para a praia. Já tinha vestido o fato de banho e estava pronta para sair quando a voz do avô me chamou, alegre, do fundo da casa. Pediu-me que me sentasse na poltrona dele, ajoelhou-se aos meus pés e ficou com o rosto à altura do meu... Beijou-me como só os avós sabem beijar, tirou de trás das costas uma caixa que colocou nos meus joelhos a sorrir e disse-me: 
- Para chegares mais depressa à praia... 
Rasguei o papel de uma vez só, abri a caixa e dei um grito de alegria... Eram os mais lindos patins que jamais vira...! As rodas cromadas brilhavam como se feitas de prata e as correias de pele que prendiam o patim ao pé eram de um vermelho vivo, quase de sangue...! Apertei-os contra o peito a chorar muito, a rir muito, beijei-os e cheirei-os, senti-os meus, inacreditavelmente meus...! Numa excitação enorme, lá ia ouvindo ao fundo, a voz do avô explicar-me que eram um bocadinho grandes "para durar" e que eu tinha de ajustar muito bem as correias ao peito do pé e prometer andar devagarinho e com muito cuidado...

Nesse dia não fui à praia. Passei a tarde no jardim a aprender a andar de patins e era tal e qual como eu tinha imaginado...! Uma sensação de liberdade, o vento no rosto, as tranças a voar atrás de mim, os braços do avô, primeiro segurando-me com firmeza, apenas uma mão, mais tarde, amparando-me as costas...  Sim, muitas vezes esmurrei os joelhos, rasguei vestidos, cheguei a casa descabelada e com as mãos em sangue, suja de terra e de pó... E já então eu era como sou hoje... Não há sangue, dor ou ferida que me assustem, que me derrubem, que me impeçam de lutar ou me afastem daquilo que amo. Como em menina, quando amo perco o instinto de conservação, atiro-me para o voo de asas abertas, rasgo o coração e não sei desistir. 

Ana Mateus



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segunda-feira, 25 de maio de 2020

Aqueles que andam por aí



As pessoas não morrem: andam por aí. Quantas vezes sinto à minha volta, não apenas a presença, o cheiro, a cumplicidade silenciosa, palavras que saem da minha boca e me não pertencem, penso:
- Não fui eu quem disse isto
e realmente não fui eu quem disse isto, foram as pessoas mortas, exprimem opiniões diferentes das minhas, aproximam-se, afastam-se, vão-se embora, regressam, não me abandonam nunca. Em que parte da casa moram, qual o lugar onde dormem, devíamos deixar pratos a mais na mesa, talheres, copos, almoço que chegasse, os guardanapos nas argolas, um lugar no sofá, metade do jornal, dado que não se sumiram: andam por aí, invisíveis (invisíveis?) densas de humanidade, tão próximas.
Os cemitérios são lugares vazios, só árvores, sem defuntos, só a gente, que arranjamos as campas, sem entendermos que não existe ninguém lá em baixo. Uns pardais nos choupos, nada. Que sítios tranquilos, os cemitérios, que inútil a palavra defunto.
Segredam-nos
- Não faleci, sabes?
e não faleceram, é verdade, continuam, na nossa lembrança, continuam de fato, pertinho. Quase sem ruído mas tomando atenção, percebem-se, quase não ocupando espaço mas, reparando melhor, ali, iguais a nós, tão vivos. Andam por aí, pertencem-nos, pertencemos-lhes, não deixamos de estar juntos: Quando é necessário poisam-nos a palma no ombro. E agora, na mesa a escrever isto, espreitam o papel, sabem, melhor do que eu, as palavras que se seguem.
Há palmas tão bonitas quanto os pássaros. Daqui a nada, sem que ela dê por isso, começa a cantar. E, ao cantar, começo a escutar as ondas. Uma após a outra. Para mim. Atrás destas janelas e destas árvores há-de haver uma praia. Reparem.

António Lobo Antunes, 
"Aqueles que andam por aí" in Revista Visão (19 a 25 de janeiro 2012)



Imagem da Web



 

Poesia do dia


 
A primavera chegará, 
mesmo que ninguém mais saiba seu nome, 
nem acredite no calendário, 
nem possua jardim para recebê-la.

Cecília Meireles



Fotografia via Pixabay




Adormeci com ela dentro de mim

 
 
Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.


José Luís Peixoto
Um casa na escuridão



Fotografia: Igreja Nossa Senhora do Rosário - Amanhecer na Janela frontal, via Wikipédia






Conto até cem e, se não chegares

 

Conto até cem e, se não chegares antes dos cem, vou-me embora. Não chegaste antes dos cem. Conto de cem a um e, se não chegares antes do um, vou-me embora. Não chegaste antes do um. Conto dez automóveis pretos e, se não chegares antes dos dez automóveis pretos, vou-me embora. Não chegaste antes dos dez automóveis pretos. Nem antes dos quinze táxis vazios. Nem antes dos sete homens carecas. Nem antes das nove mulheres loiras. Nem antes das quatro ambulâncias. Nem sequer antes dos três corcundas e, entretanto, começou a chover.


António Lobo Antunes
 in Livro de Crónicas



Fotografia de Christopher Pillitz




sábado, 23 de maio de 2020

Muitas maneiras de chorar




As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e o modo como o fazemos revela não só a temperatura dos sentimentos mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos mas choramos sempre para um outro ver.
As lágrimas são um traço tão pessoal como o olhar, ou o mover-se ou o andar.

José Tolentino de Mendonça

Instrução dos amantes



A minha cabeça no teu ombro. A tua boca nos meus olhos. Os meus cabelos nos teus dedos. Qual era a canção? O meu corpo tremia tanto. Tinha medo que tu ouvisses o meu coração a bater. Qual era a canção?

A minha boca nos teus dedos. A tua cabeça no meu colo. Os teus olhos nos meus olhos. O sol do nosso tamanho pelas frinchas da persiana. Os teus pais tinham saído nesse fim de semana, lembras-te?

Os teus olhos nos meus olhos, através do vidro, no liceu. Compravas-me chocolates. Roubavas-me o saco dos livros. Rias-te de mim, e era tão bom.
Os teus pais tinham saído. Eram os primeiros dias de calor. Fizemos refrescos e pudim flan de pacote. Puseste o disco a tocar e baixaste as persianas. Lembras-te?

Eu olhava para ti e faltava-me o ar. Escrevia o teu nome na areia da praia. Ficava horas à janela só para te ver passar de bicicleta. Mesmo quando não olhavas para mim. Onde é que tu estás agora?
Lembras-te?

Jogávamos à verdade e consequência. Ao quarto escuro. Aos namorados. Dávamos beijinhos às escondidas. Eu escrevia-te poemas e as minhas notas subiram. A minha mãe dizia que eu era uma rapariga sensata. Agora pergunta-me porque é que eu choro tanto.Toda a gente me diz que eu não tenho idade para chorar. E tu não vês. Tu já não me vês. (...) 

E as pessoas crescidas riem-se. Dizem que eu não tenho idade para desgostos de amor. Que eu vou ter muitos namorados. E eu não quero. Eu quero-te.
Só sei o teu nome. Já não escrevo poemas. Nenhum poema pode fixar a luz que havia debaixo da tua pele.
Contigo eu não precisava de imitar ninguém. O coração da terra batia ao ritmo dos teus passos. De repente tu foste-te embora e ficou tanta coisa por dizer.

Os teus braços na minha cintura. A tua boca na minha boca. Estava escuro. Havia só a luz do aquário ao lado do toca discos. Como é que tu já te esqueceste?

Os teus pais tinham saído. Os peixes flutuavam por entre as algas. Fechei os olhos. Era capaz de morrer de amor por ti. Como é que tu já te esqueceste?

Ines Pedrosa





A casa dos rododendros




Na minha rua mora uma mulher triste. Lembro-me de que quando a casa foi construída, eu abrandava sempre em frente às obras para me certificar se o gigante de cimento tinha parado de subir, porque aquela construção destoava na estrada antiga onde as moradias de dois pisos ladeiam harmoniosamente as beiradas do caminho. A casa da mulher triste tem três pisos e uma cave com duas janelas espreitando rentes ao chão, como olhos maléficos. Sempre a achei horrenda e quando ficou pronta, a família veio habitá-la e o mais belo jardim da freguesia nasceu finalmente. Era um jardim retangular com um relvado verdíssimo extremosamente aparado pelo dono da casa, aos domingos de manhã, com direito a protestos por causa do barulho infernal da máquina que perturbava o descanso dos vizinhos.

Quando começamos a conversar, a mulher triste que mora na minha rua tinha os olhos brilhantes e era conversadora... Cruzávamo-nos duas vezes por dia, de manhã bem cedo e à noite, depois do jantar, quando ela vinha passear o cão que, por saber-se em segurança, gostava de atiçar os meus, ladrando furiosamente do outro lado da estrada. E enquanto eu abria os portões, ela conversava comigo, banalidades quase sempre, e eu gabava-lhe o jardim que era a menina dos seus olhos. Singelamente verde e despojado, lembrava-me uma quina de copas com cinco magníficos rododendros imponentes, explodindo em cor, manchas carmesins num jogo de cores maravilhoso... Não sei muito bem quando foi que a mulher que mora na minha rua encheu os olhos de tristeza... Um dia vi-a sozinha, em frente à minha casa e perguntei-lhe pelo cão. Talvez tenha sido nesse momento, em que os olhos dela se demoraram nos meus, que percebi... Hoje sabe-se que a mulher dos olhos tristes vive sozinha no casarão feio a que chamamos a casa dos rododendros. O marido deixou-a há tempos, os filhos partiram para longe, casado um, a fazer Erasmus o outro, emigrado o mais novo. O cão morreu com uma infecção estranha que o veterinário nunca soube explicar... Só resta ela. Num grito de revolta, no outono passado decepou os rododendros, arrancou a relva e cimentou o jardim com uma tijoleira aos quadrados pretos e brancos, porque não queria nada em casa que lhe lembrasse "o falecido". Entendo o gesto dela mas fazem-me falta os rododendros rubros que eu não consigo fazer vingar no meu jardim... Ano após ano, todos os que planto morrem inexplicavelmente...

A mulher triste que mora na minha rua continua a sair de casa, duas vezes por dia, para "respirar"... Os meus cães gostam dela, lambem-lhe mansamente as mãos através das grades quando ela pára para lhes fazer festas com lágrimas nos olhos. Já não lhe ladram... Também eles sabem, estou certa, que naqueles gestos embrulhados em tanta solidão, naqueles olhos vermelhos de tantas lágrimas, se espelham, para sempre, os rubros rododendros da saudade.

Ana Mateus




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Feitiços e feiticeiros



Uma estrada de chão, a ponte, o sol do meio-dia. Na margem do rio, gordas capivaras. Há filhotes escondidos entre os corpos estendidos na areia. O jipe cruzará a ponte? É preciso descer e averiguar se foi avariada pelas fortes chuvas. O local é ermo.

Aparece a velha senhora, com feixe de lenha às costas. — O senhor não atravesse que a ponte está podre por baixo, a enxurrada de ontem enfraqueceu mais, só dá para passar a pé. O homem, pensativo, desiste da travessia com o carro. Precisa se encontrar com alguém da outra margem.  Decide ir sozinho, caminhando, enquanto espero no jipe. Sou o guia, sob o sol incruento do verão. Tenho onze anos e o homem me prometeu uma grana. Aquela solidão dos limites dos três estados me incomoda. Só por dinheiro me aventuraria ser guia por lugares tão ermos.

Ele atravessa a ponte, que balança. Fico a conversar com a velha camponesa. Quem ele procura? Ela quer saber. Um tal Aniz da Grota, respondo. A velha se benze. Feiticeiro, ele, não é boa gente. Mora logo adiante daquele campo de futebol, bate caxambu toda noite. Prefiro meus caminhos com o senhor Jesus, não gosto desse um tal. Cachaceiro. O que seu amigo quer com ele? Boa coisa não é, pedido de alguma maldade, com sangue de galo e mafuás. Só bobagens, o que o dos altos empíreos designa ninguém faz ou desfaz.

Não, este senhor é do banco, veio ver alguma coisa de terrenos à venda, entendi assim.

Esse menino, ela me diz, veja onde você está, no centro do estrelo, encruzilhada, você se afaste para não pegar os malefícios, toda semana tem frango degolado aí, cachaça, charuto. Melhor você sair. Olhei para o terreno, onde jaziam restos de carvão, manchas escuras, penas de aves, cacos de vidro. Não tinha reparado. Não acredito nestas coisas, mas algo em mim diz para não arriscar com as energias do universo. Espere, esbraveja a senhora, coloque isso no seu bolso. Achei lá no morro, levava para minha casa. Se chama angélica. E me entregou uma erva que parecia um amontoado de galáxias, divididas, flores brancas de odor agradável. Contra feitiços. Por aqui tem muita babosa, alá uma, acolá, ali. Te protegerá também, vai limpar as energias. Olhe aos seus pés... Uma margaça, que chamam camomila... Ajuda, bota atrás da orelha enquanto estiver aqui. Se olhar bem, a gente acha outras coisas... Mas com essas três você estará ungido. Olhalá, uma macela, e adepois, os malvariscos. Colhe e coloca no carro, pra proteger seu amigo, que virá carregado de maldição. Há plantas que matam, outras que salvam. Tem de tudo no mundo abaixo de Deus. Aqui, nas lonjuras, é as erva que nos salva. Conheço muitas. Me viro com a salvação delas. Disse, e partiu pelo caminho no meio do capim. Tinha uma porteira, que ela abriu, que parecia se abrir para o céu azul, o horizonte depois, para um sem fim.

Entrei no jipe, olhei as capivaras sonolentas mais abaixo, esperei por mais de hora, esperei, até que o homem do banco voltou. Demorei porque o sujeito resolveu me benzer, contra uma velha que existe por aqui, que segundo ele é feiticeira braba, do mal. Que deixa um rastro peçonhento. Ele até me deu essa garrafada para beber, explicou o sujeito, se rindo todo. Tem gosto de erva-doce, estou protegido. Tudo se resolveu, vamos embora. E ligou o carro, que se assanhou pelas estradas esburacadas, sacudindo mais que burro brabo, a verdade é uma busca por minúcias, e sempre se oculta. A verdade depende do lado do rio.

José Antonio Abreu de Oliveira



Crédito da imagem: desconheço a autoria


 


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Prá lá do visível


 
Não digo que te amei por ter possuído o teu corpo, mas sim por ter roçado a tua alma. Se pudesse estar apenas perto de ti, a ouvir a tua voz e a demorar o meu olhar sobre o teu, ter-te-ia amado na mesma... Fiquei presa no que está para lá do visível; enredada entre as folhas da tua verdadeira essência.

Possidónio Cachapa, in Segura-te ao meu peito em chamas



Imagem via Pinterest



 

Corre!


 

Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o sol desponta o melhor é começares a correr.

Provérbio africano




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Como se esquece?



Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e ações de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma.

(…) É preciso aceitar esta mágoa, esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução.

(…) Dizem-nos para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

Miguel Esteves Cardoso, Último Volume (Texto com supressões)



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A viagem não acaba nunca



 
A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: “Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.

José Saramago




Fotografia minha, Estrada de Morro Grande, Araruama-RJ




Poder ver a lua é um privilégio



Poder ver a lua é um privilégio. Em miúdo, nem sabes o tempo que passava olhando o espaço de mistério dessa falsária, dessa feiticeira, nos dias em que não conhecia nem os versos nem a morte. Também amava o seu silêncio. Lá em casa ninguém dava por mim ou por ela, a nossa despedida era sempre muda e sem acenos. Depois escorregava pelos lençóis e o sono então chegava, redondo e tranquilo, sabendo que, como uma loba branca entre as nuvens escuras, ela continuaria a vigiar.

Hoje, esse brilho e essa cumplicidade só estão no teu olhar. Ela, a lua, nasce para morrer, já não é presságio nem feitiço, houve até quem se atirasse para os seus braços, dando disso conta a toda a gente. Foi-se embora o encanto, afinal podia mesmo correr-se sobre ela como eu corria em miúdo pela areia dos pinhais. Apesar de tudo, a malvada ainda me prende o olhar quando aparece redonda, cheia de luz, cheia das saudades que são minhas.

Vi-te esta noite. Branca, nua, alcançável. E mesmo que de ti não chegasse qualquer espécie de perfume, ali permaneci tanto tempo com o nariz empinado, construindo a certeza de que nenhum de nós é agora particularmente feliz.

Joaquim Pessoa, in Ano Comum



Fotografia de Rodrigo Razquin








O espaço entre mim e ti

 

Não sei onde estás, 
se falas ou se apenas olhas o horizonte, 
que pode ser apenas o de uma parede de quarto. 
Mas sei que uma sombra se demora contigo, 
quando me pergunto onde estás: 
uma inquietação que atravessa o espaço 
entre mim e ti, 
e te rouba as certezas de hoje, 
como a mim me dá este poema.

 Nuno Júdice



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A vida é o que estou a ver



A vida... e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitetaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós. Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem.
A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco* onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.

Miguel Torga, in Diário


 *substantivo masculino
1. [Botânica]  Planta umbelífera que serve para pastos.
2. [Portugal: Minho]  Terreno alagado em que cresce erva.


Adeus



Não lhe pedi que viesse. Pedi-lhe só que às dez da noite, e pela última vez, a sua lembrança me esperasse ao caminho. Cheguei cedo e sentei-me. Quando soasse a hora, eu queria senti-la ao pé de mim, não bem no seu corpo, não bem nas suas palavras, mas apenas naquele sossego azul que tornava o mundo perfeito. No momento combinado, eu havia de respirar o sonho de quando não sabia que era sonho.
Tudo isto está errado. Vejo-lhe daqui o erro fechado e exato como um cubo de pedra. Mas sei que lá dentro não há erros de fora. Por isso, espero. Não lhe pedira que viesse. Também não tinha pedido a lua, e a lua veio, precisamente, quando pensei que era bom haver lua. Não fiquei pois surpreendido, quando, à hora marcada, no caminho que vai à fonte, Marta apareceu tão leve como a sua lembrança. Percebi então que as mimosas rescendiam através da noite sem medos. E que havia em roda pinheiros e veios de água e que eu estava ali no meio de tudo.

Vergílio Ferreira, "Adeus" in Apenas Homens e Outros Contos


 Imagem via  Freepik





Conheço-te



Alguém, um desconhecido virá ao meu encontro na rua, um dia, e dirá: 

- Conheço-te, sou a tua imagem abandonada, uma noite, dentro do espelho ao fundo dum sonho...

Eu ficarei a olhar-me no seu rosto igual ao meu, sem saber por onde fugir-me.

Al Berto
in Diário



Crédito da imagem: Arte fotográfica de Joné Reed




Aurora


 
Chamei-lhe Aurora. Talvez porque é das palavras mais belas da língua portuguesa, a sugerir o brilho da luz da manhã. Também como uma manhã que rasga devagarinho a escuridão da noite, a Aurora teria sido um recomeço, o dia primeiro de uma nova vida cheia de esperança. E teria sido amada, muito amada. Penso nela muitas vezes, sonhei até um sonho doce onde ela me falava e sorria, com um ramo de flores na mãozinha pequenina. Senti-lhe o cheiro, o cheiro inconfundível que têm todas as crianças. E peguei-lhe ao colo, e ela era leve como uma ave, ou uma flor...

A Aurora nunca chegou a nascer. São coisas que aceitamos quando somos confrontados com elas, os médicos nada omitem e ajudam a tomar decisões, a fazer escolhas: uma vida por outra vida. E então, vestimos a pele dos deuses e decidimos, a frio e racionalmente. Mas ninguém nos conta, como a mãe da Aurora me contou, que um pedaço de nós morre com aquele coração que deixou de bater, que pelo resto dos nossos dias haveremos de imaginar a cor do cabelo, o tom da pele, o sorriso, o jeito de caminhar, o caráter que teria o filho que não pudemos deixar nascer. Um filho: a maior de todas as prendas que a vida nos dá - ou Deus, não sei bem...

Se a Aurora tivesse nascido, eu gostaria de ter sido a madrinha dela. Ter-lhe-ia ensinado as cores do arco-íris, a construir castelos na areia e a amar o mar... Ensinar-lhe-ia lengalengas e canções de embalar, trava-línguas e provérbios... Andaria com ela de patins e de bicicleta, para que sentisse o vento bater-lhe na cara e aprendesse o cheiro a sal nos cabelos... Ensiná-la-ia a plantar rosas e a maciez da terra molhada agarrada às mãos... Talvez lhe contasse a história do homem que vive para além das montanhas, na face oculta da lua...

Uma vida por outra vida... Assim teve que ser. Mas acredito que nada é em vão, que a Aurora é hoje um anjo branco que de vez em quando vem beijar a mãe e não parte sem antes, sereníssima, me abençoar os sonhos... 

?

Ana Mateus
 
 
 
Crédito da imagem:  “Monumento à criança que nunca nasceu”, na cidade de Bardejovski Novej Ves, na Eslováquia




 
 
 
 




segunda-feira, 18 de maio de 2020

Amo tudo o que flui

 

Sim, disse comigo mesmo, eu amo tudo quanto flui: rios, esgotos, lava, sêmen, sangue, bílis, palavras, sentenças. Amo o líquido amniótico quando escorre da bolsa. Amo o rim com seus cálculos dolorosos, suas pedras e não sei que mais; amo a urina que escorre escaldante e a gonorreia que corre sem parar. Amo as palavras de histerismo e as sentenças que correm como disenteria e refletem todas as imagens doentes da alma; amo os grandes rios como o Amazonas e o Orinoco, onde os homens malucos como Moravigne flutuam através do sonho e da lenda em um barco aberto e se afogam nas cegas embocaduras do rio. Amo tudo quanto flui, até mesmo o fluxo menstrual que leva embora a semente não fecundada. [...] a violência dos profetas, a obscenidade que é êxtase, a sabedoria do fanático, o padre com sua elástica litania, os palavrões da puta, o cuspe que corre na sarjeta, o leite do seio e o mel amargo que corre do útero, tudo quanto é fluido, derretido, dissolvido e dissolvente, todo o pus e sujeira que ao fluir se purifica, que perde seu senso de origem, que faz o grande circuito em direção à morte e à dissolução. O grande desejo incestuoso é continuar fluindo...

Henry Miller
in: "Trópico de Câncer"
 

Na fotografia: Henry Miller e Anais Nin




Da arte

 

A arte não é um espetáculo para solista; é uma sinfonia no escuro, com milhões de participantes e milhões de ouvintes. A apreciação de uma bela ideia nada é, comparada à alegria de dar-lhe uma expressão - uma expressão permanente. Na verdade, é quase impossível eximir-se de dar expressão a uma grande ideia. Somos apenas o instrumento de uma força maior. Ninguém cria sozinho, a partir de si mesmo. Um artista é um instrumento que registra algo já existente, algo que pertence ao mundo inteiro e que, se for um artista, ele se sentirá obrigado a devolver ao mundo. Conservar para nós mesmos nossas belas ideias seria agir como um virtuose que se sentasse com a orquestra, de braços cruzados.
 
Henry Miller


 

Madonna, by Edvard Munch (1894) 




Dead inside

 


Cada um de nós vive dentro de um campo de concentração em miniatura, onde os instrumentos de tortura cotidiana são os nossos próprios aborrecimentos.

Pier Paolo Pasolini

in "As Últimas Palavras do Herege"



Arte  by mangaFREAK080, in DeviantArt




Jardim demarcado



Mais terrível do que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.
 
Fernando Pessoa
In Livro do Desassossego



Arte fotográfica de  Nanni Mensch





Tolerância x igualdade



Eu sou contra a tolerância, porque ela não basta. Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro. Sobre a intolerância já fizemos muitas reflexões. A intolerância é péssima, mas a tolerância não é tão boa quanto parece. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas da qual estivessem excluídas a tolerância e a intolerância.
 
José Saramago
in 'Globo 2003

 


Imagem da Web

O egoísmo pessoal tapa todos os horizontes

 

O mal e o remédio estão em nós. A mesma espécie humana que agora nos indigna, indignou-se antes e indignar-se-á amanhã. Agora vivemos um tempo em que o egoísmo pessoal tapa todos os horizontes. Perdeu-se o sentido da solidariedade, o sentido cívico, que não deve confundir-se nunca com a caridade. É um tempo escuro, mas chegará, certamente, outra geração mais autêntica. Talvez o homem não tenha remédio, não tenhamos progredido muito em bondade em milhares e milhares de anos sobre a Terra. Talvez estejamos a percorrer um longo e interminável caminho que nos leva ao ser humano. Talvez, não sei onde nem quando, cheguemos a ser aquilo que temos de ser. Quando metade do mundo morre de fome e a outra metade não faz nada... alguma coisa não funciona. Talvez um dia!
 
José Saramago



Arte by: Yelken_Fadime 




Aflige-me a apatia



Este país preocupa-me, este país dói-me. E aflige-me a apatia, aflige-me a indiferença, aflige-me o egoísmo profundo em que esta sociedade vive. De vez em quando, como somos um povo de fogos de palha, ardemos muito, mas queimamos depressa.

José Saramago

 


Fotografia - By Eduardo Gageiro




Ao som do blues

 


A lua de neon denunciava as sombras de seus olhos...
Não, não era modismo da milagrosa cosmética, era dor de fato. Lançou-se na penumbra da noite certa de que outros olhos solitários iguais aos seus poderiam estar ali à procura...
A chuva instigava o calor humano e os bares estavam cheios, cada qual buscava usufruir da melhor forma aquela noite chuvosa de sábado. Havia também como é natural, embora reservadamente, rostos que ansiavam por serem correspondidos...
Na rua, poças d' águas refletiam estilhaços de luzes coloridas,
e lá dentro, a meia luz uma voz rouca cantava um blues...
Na pista de dança a música envolvia os casais em sua magia e, olhos que se conheceram ali, iam aos poucos buscando afinidades e revelando suas carências...

Fernando Maioni



Imagem da Web




Cintilições do sagrado

 

Nietzsche era uma dessas pessoas possuídas por um profundo sentimento místico e que, precisamente por causa dele, tinha de ficar longe de todas as religiões. As igrejas o horrorizavam.
Dizia que elas mais se pareciam com sepulcros de Deus. E tinha horror das músicas que ali se cantavam, que ele comparava ao coro de rãs dentro de um charco… Sim. Sou religioso. O universo é o meu templo. O ruído dos regatos, o barulho do vento nas folhas dos eucaliptos, o perfume do jasmim, as cores do crepúsculo, as experiências de arte e de brinquedo são, todos, para mim, sacramentos fugazes experiências do sagrado. Deus nunca foi visto por ninguém. Mas sempre que tenho uma efêmera experiência de beleza e da amor é como se eu tivesse visto, num breve segundo, uma cintilação do sagrado.

Rubem Alves




Arte de Chie Yoshi



Nesta era do efêmero

 

Na era do efêmero em que vivemos, é essa nulidade enorme de pessoas a nos cercar que mais me enerva.
Um brinde aos complexos, aos profundos e aos problemáticos em geral!
A partir de agora, de raso só quero a água nos meus olhos que insiste em brotar com tudo o que ao redor me emociona.

Fernando Augusto Martins Canhadas



Fotografia de  Noell S. Oszvald 




Pão, amor e alegria


 
 
Relembranças

E agora?

Acordei fora de hora, e o barco da noite vai singrando longe. De madrugada a gente ouve ecos do que houvera, o desesquecimento. Minha vida toda quase uma neblina, assim acolchoada por um manto de filó, sim, me lembrei, viste seu menino, falei em filó, veio o doce que minha tia fazia, de uma massa tão fina, que se desdobrava transparente. Havia um ritual de apreparos, um jeito de ir afinando a massa com as mãos e a lei da gravidade, que nem barbela de peru, rendado caído, mas que no depois se espalhava como aquele tecido de véu de noiva chamado o tule, ou a organza, me lembro dela falando desses panos quando costurava.

Era um tempo de que fazer. De afazeres. Não são mais. Tudo comprado pronto hoje, para a gente ter mais tempo de ser triste, acho, reclamar de tédio, assim esvaziado de alma. Gosto das tarefazinhas das antigas, meus respeitos majestáticos aos que sabem delidar com as mãos. Ora pro nobis que desandei a caçar serviços, estudar objetos, desmontar e refazer o diferente. Não se esquecendo que somos bichos curiosos e precisamos desafios. Astrodia fiz um doce. Para alegrar uma donzela que amo. Os amores nossos, que pouco vemos.

Será que tenho sísmico de padeiro? Me enrodilhou na testa o expediente de fazer massa filo, ou filó, quiçá o doce fidalgo, ou uma receita esquecida nos livros que cheiram a manteiga e farinha. Acho que queria uma padaria, sim, acordar cedo, ouvir as engrenagens do cilindro, o crestar dos fornos, comprar uma batedeira planetária, que é risível, só de ver me adverte, advirto-me, e me divirto. E os padeiros riem cedo, contam anedotas, enquanto a fatiadora vai estilhaçando as horas. Todo pão é alegre: pelas risadas dos padeiros madrugadores. Pão só entristece depois de muito azo, prazo, estado atmosférico. Coisa que aprecio é chapéu de mestre cuca.

A noite esticada no cilindro de pão. Passada e repassada, e o dia não virá. Se fez grume. De fantasias e lembranças. Vou não, sim, dormir. Sim, vou, não. Preciso arrancar o sono das tramas das cobertas. Talvez até que seja fácil, e se achegue, como menino com fome. Tresvariei, e escrevi uns tragos. Tinha que ter sabor baunilha, caipira pâtissier. Pro seu acordar suave. Quando que tu abrir os olhos queria de tar de seu lado, minha amiga, meu amigo, com a bandeja dos agrados. Pão, amor e alegria. E um país imenso que se arregale.

Bom dia.

José Antonio Abreu de Oliveira


Imagem da Web

 



quinta-feira, 14 de maio de 2020

Ausencia um do outro

 

Para lá da dilaceração dos dias, dos livros, discos e filmes que nos coloriram a vida, encontramo-nos agora juntos na violência do sofrimento, na ausência um do outro como já não nos lembrávamos de ter estado em presença. É uma forma de amor inviável, que, por isso mesmo, não tem fim.

Inês Pedrosa
 



Fotografia de @ Diddie Vitt




#ficaemcasa



Neste dias difíceis de quarentena, parece que as "lives" tem sido as vedetes... Através de emissoras de tv e sites da Internet as ofertas são muitas... Dificilmente assisto, pois meu gosto musical não é muito atendido nesses eventos. Mas tenho as minhas próprias "lives" particulares, diretamente em frente a minha janela: a passarada e seus piu piu piu... As aves esvoaçam muito mais felizes do que há 3 meses atrás. E cantam, cantam... Estou tentada a especular de que está diretamente relacionado com a diminuição de ruído dos carros. Olhem pelas suas janelas... eles são mais simples que muitos destes supostos artistas que tem se apresentado por aí... 

🐦🐦🐦🐦

Havia borboletas

 

Havia borboletas. Entravam pelas fechaduras das casas e ao chegar lá dentro evaporavam-se em cores lilases e amarelas, dando constantemente outro aspecto ao interior. Pastoras e prados em cima das mesas, por baixo dos cinzeiros. Uma pereira a tentar desesperadamente crescer na estante entre dois livros. Um oceano boiando por baixo do carpete. Barcos e vento subindo e descendo o corredor. As facas da cozinha talhando grutas no azulejo. E cada teto evaporado, uma vertigem, lágrimas pingando da torneira para o lavatório, toda a noite, toda a noite.

Manuel Cintra





Butterflies rest on fruit in the “Sensational Butterflies” exhibition at the Natural History Museum on March 25, 2013 in London, England. (Photo by Oli Scarff)




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